segunda-feira, 28 de maio de 2007

A Psicose


A psicose é um estado anormal de funcionamento psíquico. Mesmo não sabendo exactamente como são as patologias psiquiátricas, podemos imaginar algo semelhante ao compará-las com determinadas experiências pessoais.

A tristeza e a alegria assemelham-se à depressão e à mania; a dificuldade de recordar ou de aprender estão relacionada à demência e ao atraso mental; o medo e a ansiedade perante situações corriqueiras têm relações com os transtornos fóbicos e de ansiedade. Da mesma forma outros transtornos psiquiátricos podem ser imaginados a partir de experiências pessoais. No caso da psicose não há comparações, nem mesmo um sonho por mais irreal que seja é semelhante à psicose.

A essência da psicose

Quando alguém nos conta uma história realista dependendo da confiança que temos nessa pessoa, acreditaremos na história. Na medida em que constatamos indícios de que a história é falsa e começamos a pensar que o nosso amigo se enganou ou que no fundo não era tão confiável como julgávamos.

O que se passou naquela situação? Primeiro, um facto é admitido como verdadeiro, depois novos conhecimentos ligados ao primeiro são adquiridos, por fim a confrontação dos factos permite a verificação de uma discordância. Do raciocínio lógico surgiu a dúvida e o questionamento. É a aplicação do juízo crítico, racional, na avaliação perceptiva da realidade.

Aquele modo de proceder provavelmente é exercido diariamente por todos nós. A forma de conduzir ideias confrontando-as com os factos é uma maneira de estabelecer o contacto com a realidade. O que aconteceria se essa função mental não pudesse mais ser executada? Estaríamos diante de um estado de percepção da realidade de cariz psicótico.

Assim sendo, o aspecto central da psicose é a perda da função de juízo racional crítico para com a realidade, isto dependendo da intensidade da psicose.

Num dado momento a perda será de maior ou menor intensidade. Os psicóticos quando não estão em crise, zelam pelo seu bem-estar, alimentam-se, evitam magoar-se, têm interesse sexual, estabelecem contacto com pessoas reais. Isto tudo é indício da existência de um relacionamento com o mundo real.

A psicose (sob a forma de fase ou de crise) propriamente dita começa a partir do ponto em que o paciente se relaciona com objectos e coisas que não existem no nosso mundo. Modifica os seus planos, cristaliza as suas ideias, as suas convicções, altera o seu comportamento por causa de ideias e de crenças exageradas, absurdas ou incompreensíveis, ao mesmo tempo em que a realidade clara e patente para a maioria dos que o rodeiam significa pouco ou nada para o paciente.

Um psicótico pode sem motivo aparente cismar que o vizinho de baixo está a preparar um plano para lhe fazer mal, mesmo sabendo que no apartamento de baixo não mora ninguém. A cisma ou crença, neste caso de pendor obssessivo e irrealista, pertence ao mundo psicótico, pelo que a anulação da informação relevante de que ninguém mora no piso de baixo(como evidência na invaliação crítica da crença persecutória do exemplo dado)representa a perda do contacto com o mundo real.

No nosso ponto de vista o que são dados conflituantes para a maioria de nós, para um psicótico não são; talvez ele não saiba explicar como um vizinho que não está lá possa fazer algo contra si, mas a explicação de como isso acontece é irrelevante, o facto é que «o vizinho está a preparar o tal plano maquiavélico e pronto».
O mesmo se pode passar, em graus diferenciados, noutras situações de pendor psicótico delirante, como os delírios de ciúme ou os delírios persecutórios.

O psicótico (em crise) vive num mundo onde a realidade é outra e esta é inatingível por nós ou até mesmo por outros psicóticos. No entanto, fora da crise psicótica, o psicótico vive também simultaneamente no mundo real, i. é, aquele que é percepcionado pelo juízo crítico isento de distorções cognitivas e de percepção significativas.

Delírio, o principal sintoma

O delírio é toda a convicção inabalável, incompreensível e absurda que um psicótico possui. A crença, por sua vez, também possui uma essência delirante, mas geralmente é constituida por distorções cognitivas fortemente arreigadas no indivíduo ou numa comunidade.

O delírio pode ser proveniente de uma recordação para a qual o paciente dá uma nova interpretação, pode vir de um gesto simples realizado por qualquer pessoa como coçar a cabeça, pode vir de uma ideia criada pelo próprio paciente, pode ser uma fantasia como acreditar que seres espirituais estejam a enviar mensagens do além através da televisão, ou mais realistas como achar que o sócio está a roubar dinheiro da empresa.

O delírio também pode ser proveniente de eventos simples como coçar a cabeça ou olhar para alguém que olha para nós: ver um vizinho coçar a cabeça pode não significar nada, mas para um paciente delirante pode, por exemplo, ser entendido como um sinal de que tal vizinho que coçou a cabeça julga-o (ao paciente) homossexual; ou se alguém olha para si, pode significar que existe uma conspiração para lhe fazer mal, ou que se prepara um rapto, uma violação ou algo semelhante.

Quando a ideia é muito absurda é fácil perceber que se trata de um delírio, mas quando é plausível é necessário examinar a forma como o paciente pratica a ideia que defende, isto porque existem crenças delirantes e delírios muito semelhantes a formas comuns de mito colectivo, de delírio grupal (crenças religiosas, visões, conversões, mitos urbanos, etc.).

Para um profissional treinado as evidências da psicose são rápidamente identificadas, enquanto que para familiares, amigos e conhecidos os sintomas são tidos muitas vezes como particularidades ou como feitio, o que pode permitir à deteriorização gradual, insidiosa e irreversível das funções psíquicas, cognitivas e emocionais, assim como o comportamento inerente.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Canabis vista pela comunidade científica


As inflorescências e as folhas da planta feminina da cannabis sativa, subespécie indica, produz uma resina que contém compostos psicoactivos designados de canabinóides. A concentração de canabinóides na planta atinge o seu máximo nas inflorescências, decrescendo nas folhas, caules e raízes, não existindo sequer nas sementes. Esta concentração está dependente do clima, do solo, do tipo de planta e do modo como é tratada.

A cannabis sativa contém mais de 400 compostos químicos, dos quais cerca de 60 são canabinóides, sendo estes meroterpenos substituídos. Destes, o mais importante e também o mais abundante é o tetrahidrocanabinol (THC), cujo isómero D9-THC é o mais activo. Além deste, existe também o D8-THC que está presente em muito menor concentração e apresenta menor potência psicotrópica.

São também exemplos de canabinóides: o canabidiol (CBD; desprovido de efeitos psicotrópicos), o canabigerol (CBG), o canabinol (CBN; um produto de oxidação do THC e uma indicação de que a planta está deteriorada), o canabicromeno (CBC) e o olivetol (percursor biossintético dos diferentes canabinóides). Na planta, estes compostos surgem juntamente com os correspondentes ácidos carboxílicos, e com outros compostos como os flavonóides que podem contribuir ou não para a sua actividade farmacológica. Actualmente já existe no mercado o THC sintético denominado dronabinol.

Os canabinóides actuam em receptores específicos (CB1 e CB2), encontrando-se os receptores CB1 sobretudo a nível central, principalmente no cerebelo, hipocampo, gânglios basais e córtex, isto é, nas regiões cerebrais envolvidas na memória, desenvolvimento cognitivo, percepção da dor e coordenação motora, e também na pele. Já os receptores CB2 encontram-se a nível periférico e foram identificados em macrófagos da zona marginal do baço.

Embora ainda não esteja totalmente definido pensa-se que os receptores dos canabinóides estão acoplados a uma proteína G inibitória (Gi), que quando activada inibe a adenilciclase. Desta forma, esta enzima não consegue catalisar a conversão do ATP em AMP cíclico, o segundo mensageiro. As propriedades analgésicas dos canabinóides parecem ocorrer por este mecanismo.

A descoberta de um receptor levantou a questão sobre a possível existência de um ligando endógeno, bem como de um sistema neuroquímico próprio para os canabinóides. A evolução dos estudos levou ao isolamento da anandamida, um derivado dos ácidos gordos, a qual produz efeitos farmacológicos semelhantes aos do D9-THC, embora seja 4 a 20 vezes menos potente e tenha menor duração de acção.

Muito se tem avançado neste campo mas ainda há muitas questões por responder, tais como: “Porque é que este sistema existe? Qual o seu papel fisiológico? Quais seriam as manifestações físicas de um desequilíbrio deste sistema?”; na realidade, a função deste sistema e a sua interacção com outros sistemas neuroquímicos continua por esclarecer.

Metabolismo
Após inalação, o D9-THC é rapidamente absorvido para a corrente sanguínea e redistribuído. Inicialmente a metabolização ocorre nos pulmões e no fígado, havendo conversão do D9-THC a 11-hidroxi-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC). Este metabolito é mais potente que o D9-THC e também mais lipofílico, pelo que atravessa prontamente a barreira hemato-encefálica. Posteriormente, no fígado, o citocromo P450 transforma o 11-OH-THC em metabolitos inactivos, dos quais se destaca o 11-nor-carboxi-D9-THC (THCCOOH), o metabolito mais abundante no plasma e na urina.

Devido à sua elevada lipofilia, o D9-THC pode acumular-se por largos períodos no tecido adiposo do organismo, pelo que alterações na dieta ou na actividade que mobilizem o tecido adiposo podem provocar um aumento dos níveis de canabinóides. Normalmente os efeitos desta droga duram 2 a 3 horas, mas no caso de haver cedência podem ser prolongados.

Os metabolitos dos canabinóides são conduzidos pela circulação entero-hepática para o lúmen intestinal e excretados nas fezes (65%), ou são encaminhados através da circulação renal e excretados na urina (35%). Através desta via de excreção é possível detectar os utilizadores deste tipo de drogas (marijuana e haxixe).

Uma das questões mais frequentemente efectuada relaciona-se com o período de tempo necessário para que não seja possível detectar os metabolitos dos canabinóides na urina, após se ter fumado um simples cigarro de canabis. Os metabolitos podem ser encontrados na urina 3 a 10 dias após o consumo, em utilizadores ocasionais, alargando-se este período até 1-2 meses nos utilizadores crónicos. Conforme os níveis de metabolitos dos canabinóides encontrados na urina pode-se interpretar os resultados do seguinte modo:

a) <20 ng/mL: negativo
b) 20-50 ng/mL: pode não distinguir um uso recente por um utilizador ocasional de um uso passado de um utilizador regular
c) > 50 ng/mL: pode ser detectado em utilizadores regulares mais do que 2 semanas após a última utilização
d) > 400 ng/mL: indica recente uso de uma elevada quantidade de droga.

Efeitos toxicológicos
Os canabinóides produzem uma grande variedade de efeitos toxicológicos no homem, que se podem diferenciar em efeitos agudos (mais notórios nos utilizadores ocasionais de canabis) e em efeitos crónicos (presentes em utilizadores regulares).

Dos efeitos agudos causados pela canabis são de salientar a euforia e o relaxamento, seguidos de sonolência, sedação e, por vezes, depressão; as alterações perceptuais, a distorção do tempo, e a intensificação de experiências sensoriais como comer, ouvir música, ver um filme são também frequentes. Para além destes efeitos, uma pessoa que está sob o efeito dos canabinóides também apresenta a memória a curto prazo, a atenção, a coordenação motora e o tempo de reacção diminuídos.

No entanto, os efeitos secundários mais desagradáveis para os utilizadores inexperientes de canabis são a ansiedade e o pânico, efeitos estes que levam, muitas vezes, ao abandono da utilização desta droga, e que são mais evidentes nos idosos e nas mulheres e menos frequentes nas crianças. Estes efeitos também podem ser observados em utilizadores mais experientes, após o consumo de uma dose de THC superior ao que é habitual.

A diminuição da coordenação motora, bem como dos níveis cognitivos e da atenção, leva a um aumento do risco de acidente, caso os utilizadores conduzam sob o efeito dos canabinóides. Mas contrariamente ao que se passa com os consumidores abusivos do álcool, os condutores sob a influência da canabis tendem a ser mais cuidadosos.

O fumo da canabis ou a ingestão do THC também aumenta o ritmo cardíaco em poucos minutos, durando este efeito até 3 horas. Além disso, a pressão arterial aumenta quando uma pessoa está sentada e diminui se o indivíduo estiver em pé. No entanto, estes efeitos são desprezáveis e sem grande importância clínica nos jovens utilizadores, os quais desenvolvem tolerância aos mesmos.

A toxicidade aguda dos canabinóides é muito baixa e os efeitos agudos desenvolvidos estão dependentes da dose consumida, podendo ser exacerbados quando ocorre a co-utilização da canabis com o álcool ou com outras drogas.

No que se refere aos efeitos crónicos da canabis, muitos são conhecidos enquanto que outros não passam de meras hipóteses, aguardando a sua confirmação através de vários estudos em ambiente controlado. O risco do aparecimento deste tipo de efeitos aumenta com o aumento da potência da droga utilizada, da quantidade usada, da frequência de uso e do tempo de exposição à canabis. O início precoce da utilização da droga também aumenta o risco de aparecimento de efeitos crónicos.

O cérebro é o principal alvo da canabis, logo os efeitos dos canabinóides sobre o sistema nervoso central são dos mais preocupantes.

O uso regular de canabis pode conduzir ao aparecimento de encefalopatias, devido a esta ter um tempo de semi-vida elevado e acumular-se no tecido adiposo do organismo, fazendo com que os efeitos exercidos sobre o sistema nervoso persistam após os efeitos imediatos terem desaparecido.

A canabis pode causar danos permanentes a nível das funções cognitivas e comportamentais, sendo estes mais evidentes quanto maior for o tempo de utilização da droga.
O uso continuado dos canabinóides danifica a capacidade de estar com atenção, de filtrar a informação importante da que é irrelevante. A memória também pode ficar comprometida, bem como a capacidade de aprendizagem e a percepção.

Outro problema relacionado com o uso crónico da canabis é o desenvolvimento de dependência, com um quadro semelhante ao do álcool, que inclui sintomas como irritabilidade, agitação, insónia, náusea, cãibras e distúrbios do sono, que podem ser registados em electroencefalogramas.

O síndroma amotivacional também está ligado ao uso crónico da canabis, consistindo num estado de passividade relativamente às actividades habituais, sejam elas profissionais ou recreativas. São sete os componentes que permitem identificar este síndroma:

 Apatia geral e passividade;
 Perda de vontade de trabalhar, bem como de produtividade, acompanhada de uma falta de preocupação pela baixa performance profissional;
 Perda de energia e cansaço;
 Incapacidade de lidar com a frustação;
 Quebra na concentração e na capacidade de processar nova informação;
 Aparência e hábitos desleixados;
 Estilo de vida que visa a procura e consumo da canabis e outro tipo de drogas.

No entanto, como os utilizadores crónicos de drogas muitas vezes já apresentam problemas comportamentais, bem como quadros depressivos, parecendo alienados ou “chateados” com a vida, é difícil distinguir se a canabis é a responsável pelos problemas comportamentais observados ou se estes já existiam previamente.

Doses elevadas de THC produzem confusão, amnésia, delírios, alucinações, ansiedade e agitação. Estas reacções são raras, ocorrendo, normalmente, após um uso abusivo da canabis; e na maior parte dos casos estes efeitos são rapidamente revertidos após um período de abstinência da droga.

A canabis também pode precipitar diferentes tipos de disfunções mentais em indivíduos susceptíveis, incluindo psicoses, quadros de ansiedade e reacções depressivas agudas. Aparentemente, a canabis piora os sintomas de desordens mentais como a esquizofrenia, aumentando as alucinações.

Mesmo os esquizofrénicos paranóicos reconhecem o agravamento da sua patologia com o uso da canabis, embora continuem muitas vezes a tentar automedicar-se com esta droga. Contudo, o risco relativo de desenvolver doenças psiquiátricas na população utilizadora de canabis é aparentemente muito pequeno.

Foi sugerido que a etiologia da esquizofrenia podia incluir um desequilíbrio nos sinais dos canabinóides endógenos uma vez que os níveis cerebrospinais de anandamida são elevados em doentes com esquizofrenia. Sabe-se hoje que o uso de canabis não desencadeia psicoses agudas em indivíduos previamente assintomáticos, mas que pode exacerbar os seus sintomas em doentes com desordens psiquiátricas prévias.

O uso crónico da canabis está associado a um aumento dos sintomas de bronquite crónica, como tosse, produção de expectoração e respirar com dificuldade, imitindo um som característico, bem como a um quadro de broncoconstrição. A função pulmonar destes utilizadores está largamente diminuída e as suas vias aéreas superiores encontram-se muito alteradas.

Tal como se passa com o tabaco, o fumo da canabis induz alterações histopatológicas que podem levar ao aparecimento de cancro do pulmão, estando este risco aumentado nos utilizadores crónicos. É ainda de salientar que os efeitos adversos do fumo da canabis e do fumo do tabaco são aditivos.

São também possíveis efeitos toxicológicos, o aumento do risco dos cancros da cavidade oral, faringe e esófago, contudo estas observações ainda não estão devidamente comprovadas.

Os canabinóides também afectam o sistema cardiovascular. O THC pode induzir taquicardia, hipotensão ortostática e diminuir a agregação plaquetária. A exposição aos canabinóides também pode agravar condições pré-existentes para o aparecimento de doenças como a angina de peito e insuficiência cardíaca congestiva.

Se uma pessoa consumir elevadas doses de canabis ocorre uma dilatação dos vasos sanguíneos e um aumento do ritmo cardíaco, do que resulta uma vasodilatação periférica. Após uma exposição prolongada pode ocorrer hipotensão e bradicardia.

Os efeitos reprodutivos causados pela canabis no homem e na mulher ainda são incertos, mas tudo aponta para que a utilização continuada da canabis altere a menstruação da mulher, aumentando os ciclos anovulatórios e os riscos de desordens menstruais, o que pode causar infertilidade feminina.

Já no homem, o uso crónico da canabis causa uma diminuição nos níveis de testosterona e na quantidade de esperma produzido, podendo os espermatozóides apresentar anomalias morfológicas e uma motilidade diminuída. Outros efeitos que também poderão ser observados são a diminuição do tamanho dos testículos, uma diminuição da líbido e fenómenos de ginecomastia.

O consumo de canabinóides durante a gravidez faz com que a probabilidade de ocorrer parto prematuro seja ligeiramente maior e a criança nasça com baixo peso, sendo estes riscos maiores para mulheres grávidas que consomem canabis regularmente.
As crianças que foram expostas aos canabinóides durante a sua gestação apresentam dificuldades de memória e em estarem atentas, e o seu funcionamento cognitivo também está alterado, sendo estes factores mais evidentes quando a criança atinge a idade escolar. É ainda de realçar que o risco de cancros, como a leucemia, está aumentado neste tipo de crianças.

A nível do sistema imunológico, o fumo da canabis poderá ser mutagénico e também carcinogénico. Os canabinóides diminuem o tamanho dos órgãos linfóides, danificam as respostas mediadas por células e a resposta humoral nos roedores; e diminuem a resistência às infecções. A morfologia dos macrófagos e a sua capacidade fagocítica é afectada negativamente pelo THC, que também altera a produção de interleucinas pelos macrófagos. Nos pulmões dos fumadores de canabis denota-se uma supressão da produção de superóxido por parte dos macrófagos alveolares.

Quando a quantidade de THC e o tempo de exposição aumentam, os níveis de IgG diminuem e os níveis de IgD aumentam, enquanto que os níveis de IgA e IgM mantêm-se inalterados. Com base nestes dados pode-se concluir que, aparentemente, o fumo da canabis produz distúrbios moderados na actividade linfocítica humana. No entanto, ainda não há provas conclusivas de que os canabinóides danificam o funcionamento do sistema imunológico humano.

Convém ainda referir que a canabis pode interagir com outros fármacos do seguinte modo:
 potencia o efeito sedativo quando utilizada com álcool, diazepam, anti-histamínicos, fenotiazinas, barbitúricos, ou narcóticos;
 potencia o efeito estimulante quando usada com cocaína ou anfetaminas;
 antagoniza os efeitos da fenitoína, propranolol, e insulina.

Efeito terapêutico
Apesar de ser normal e maioritariamente vista como droga de consumo recreativo, a verdade é que a canabis esconde em si um enorme potencial terapêutico. Além das suas propriedades anestésicas e facilitadoras do parto há muito descritas, muitas outras lhe podem ser atribuídas. Sendo assim, o D9-THC tem vindo a ser utilizado no alívio da dor, no glaucoma, nos espasmos musculares, na asma brônquica e na náusea. No entanto, o seu uso clínico está limitado devido à falta de evidências que comprovem que ele é melhor que os fármacos correntemente utilizados nestes casos.

A esclerose múltipla é uma doença progressiva que se caracteriza por espasmos musculares, dores, tremores, problemas de equilíbrio, cansaço e incontinência. Neste caso, a canabis é utilizada com vista a eliminar os espasmos musculares e a dor que lhes está associada. Doentes com esclerose múltipla que foram sujeitos à terapêutica com canabis revelaram melhorias sintomáticas mesmo após a administração de pequenas doses de canabinóides.

Um estudo feito com nabilona (um agonista sintético cujo uso como anti-emético e na esclerose múltipla é legal) mostrou que esta também é capaz de debelar estes sintomas. Infelizmente os outros estudos realizados têm recorrido ao D9-THC e não à planta da canabis, pelo que não se considera o efeito modulador exercido pelo canabidiol (CBD).

As propriedades anti-nociceptivas dos canabinóides já foram referidas. De facto, estes compostos seriam analgésicos muito úteis caso os efeitos psicoactivos fossem eliminados. Estudos demonstraram que tanto o THC como o CBD têm propriedades analgésicas, sendo que as doses de 15 a 20 mg de THC exercem o mesmo efeito que 60 a 120 mg de codeína. Também a nabilona pode ser usada com a finalidade de aliviar a enxaqueca.

Os canabinóides (ex: CBD) também são usados na dor associada à artrite reumatóide e outras doenças auto-imunes, sendo que, nestes casos, é também benéfico o seu efeito anti-inflamatório.

Ainda a nível central pode referir-se a possibilidade da utilização de CBD para controlar movimentos distónicos, ou para aliviar os sintomas depressivos. De facto, verificou-se que os doentes que tomavam nabilona para o alívio da dor, preferiam tomar canabis porque sentiam que havia uma diminuição da depressão e da ansiedade associada. Este facto não é surpreendente se se tiver em consideração que o CBD é, provavelmente, o agente responsável pelos efeitos ansiolíticos da canabis. No entanto, a utilização desta planta como antidepressivo é controversa já que há estudos nos quais a canabis parece precipitar ataques de ansiedade.

Também o síndroma amotivacional, que é frequente nos utilizadores crónicos de canabis, parece dever-se à depressão.

Também na doença bipolar a canabis pode ser usada, quer como substituta dos fármacos convencionais quando estes não funcionam, quer como adjuvante no tratamento de forma a reduzir as doses de lítio.

Como já foi referido, a canabis apresenta efeitos cardiovasculares como taquicardia e hipotensão. Pensa-se que no choque séptico e hemorrágico a activação do sistema canabinóide periférico contribui para a hipotensão associada, um processo no qual o CBD está, mais uma vez, implicado. Este facto sugere que pelo menos alguns dos efeitos cardiovasculares são independentes da psicoactividade (já que o CBD não é psicotrópico) e abre novas perspectivas para o desenvolvimento de novos anti-hipertensivos, com um modo de acção distinto.

Em 1971 observou-se que fumar canabis reduzia a pressão intra-ocular em cerca de 25-45%. Confirmou-se também que este efeito era muito curto (3-4 horas) e que era da responsabilidade do THC e não do CBD. Sendo assim, a utilização da canabinóides no tratamento do glaucoma é normalmemente acompanhado de muitos efeitos adversos, devido à psicoactividade do THC, pois são necessárias doses muito elevadas para atingir o efeito pretendido. O desafio consiste, portanto, em encontrar derivados que não apresentem efeitos psicotrópicos.

O THC é um broncodilatador de longa duração de acção quando administrado oralmente ou na forma de aerossol.

Fumar canabis não é uma hipótese muito viável em doenças pulmonares até porque há outros constituintes no fumo da canabis que podem, paradoxalmente, causar broncoconstrição por irritação. Desta forma, o papel dos canabinóides na asma é limitado no presente.

O uso mais frequente dos canabinóides (sobretudo o dronabinol e a nabilona) é, de facto, como anti-emético, principalmente na emese induzida pela quimioterapia. Se bem que, neste caso, normalmente se faça a administração oral dos canabinóides isolados, a verdade é que os doentes que experimentaram fumar canabis ficaram com a ideia de que esta via é mais eficaz que a ingestão.

Os canabinóides são mais eficazes que a proclorperazina (anti-emético) e pensa-se que a combinação de canabinóides com este fármaco seja mais eficaz do que altas doses de metoclorpramida e dexametasona. O D8-THC foi usado em doses elevadas (18 mg/m2) como anti-emético em crianças com cancros hematológicos. O vómito foi completamente inibido e os efeitos adversos foram mínimos, facto que se deve não só à menor psicoactividade do D8-THC (em relação ao D9-THC) mas também à melhor tolerabilidade que as crianças apresentam face aos efeitos dos canabinóides.

Sabe-se que fumar canabis estimula o apetite, e este efeito serviu de base à utilização desta planta com a finalidade de melhorar o apetite em doentes com SIDA. Muitos estudos clínicos comprovam que há melhorias do apetite, do humor, uma diminuição do vómito e estabilização do peso corporal, factores que contribuem para um aumento na qualidade de vida destes doentes.

No entanto, convém não esquecer que os estudos animais indicam que os canabinóides podem afectar o sistema imunológico. Será que um fármaco com possíveis propriedades imunossupressoras pode ser administrado a doentes que já têm o seu sistema imunológico comprometido? Só a pesquisa futura e a realização de mais ensaios clínicos permitirá concluir se o D9-THC realmente beneficia estes doentes.

O cancro de pele é uma das malignidades mais comuns em humanos. Como tal, muitas estratégias terapêuticas para o tratamento destes tumores têm vindo a ser investigadas. Recentemente verificou-se que os canabinóides têm capacidade de inibir o crescimento destes tumores, tanto induzindo a apoptose das células carcinogénicas como diminuindo a vascularização tumoral, isto é, inibindo a angiogénese.
Para que estes efeitos ocorressem era necessário provar a existência dos receptores CB1 e CB2 na pele e nos tumores de pele. Os estudos realizados permitiram concluir que eles existem, de facto, tanto na pele normal como nos tumores de pele. Sendo assim, e sabendo que um tumor mobiliza em seu redor uma série de vasos sanguíneos que são fundamentais para o seu crescimento, há a possibilidade de recorrer aos canabinóides para inibir a expressão dos factores pró-angiogénicos.

Como se pode concluir, a canabis parece possuir um forte potencial terapêutico embora ainda precisa de ser melhor estudado. O próximo passo, que nos parece essencial, é tentar separar as várias propriedades farmacológicas das psicoactivas dos compostos.

Apesar da canabis apresentar muitas possibilidades de intervenção farmacológica, a verdade é que não se podem esquecer os seus efeitos adversos.

É muito importante que os médicos alertem os seus doentes para os riscos que correm quando são tratados com canabinóides! Este aspecto é particularmente importante caso o tratamento seja prolongado porque podem surgir casos de dependência psíquica da droga nos utilizadores regulares.

A questão mais controversa em torno dos canabinóides é, talvez, a da sua legalização.

Existem países em que se pretende que a utilização da canabis seja legal quando feita com fins medicinais. Os que estão a favor desta legalização consideram que a possibilidade de obter THC eliminaria a necessidade de recorrer à planta propriamente dita. Na realidade, o desenvolvimento de um canabinóide selectivo e potente, dotado de maior eficácia que os fármacos correntes, acabaria com esta controvérsia.

De qualquer maneira, assegurar o acesso legal à canabis é um problema para os pacientes aos quais se prescrevem canabinóides, a não ser que o governo a forneça ou possibilite o seu cultivo pelos doentes. No entanto, os governos que querem fornecer canabis aos pacientes enfrentam duras críticas relacionadas com o “mau exemplo” que dão aos jovens.

Parece essencial que, antes de haver a legalização da droga, ocorra uma mudança de mentalidades tanto nos adultos como nas crianças e jovens. Isto só será possível informando as pessoas sobre as potencialidades desta droga e também sobre os riscos que se correm quando ela é utilizada quer com fins recreativos, quer com fins medicinais.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Mundano, o Dândi e o Snob: do Falso-self ao Fetichismo


«O mundano, o dândi, o snob, assim como o frívolo, ou mesmo a star são semelhantes no sentido de manterem uma ligação especular: os olhos dos outros reflectem-lhes, como um espelho, aquilo que desejariam ser.

A sua incessante demanda narcisista da imagem no espelho parece mais importante do que maneira como o indivíduo se considera. Narciso reconhece-se numa nascente de água pura, que foi procurar para acalmar a sua sede. Ora, o amor por si, que fez nascer esse instante de auto contemplação, condu-lo à inanição. Não querendo turvar a sua imagem, não consegue decidir-se a beber daquela água.

O falso-self (falso-eu) é a personalidade que designamos «como se». Manifestam um comportamento social de fachada, são muito mutáveis, volúveis, inautênticas. Embora pareçam ouvir os outros, porque não os contradizem, essa escuta é geralmente superficial. Quando emitem opiniões seguem as ideias dos outros por sedução, e pretendem deslumbrar ao usarem os temas em voga.

Na verdade, por trás desse verniz, são seres que, na sequência de um traumatismo infantil, procuram a todo o custo proteger o seu verdadeiro Eu do mundo exterior. No entanto, ao contrário dos mitómanos, para o falso-self a invenção de uma personagem fictícia está fora de questão; trata-se simplesmente de adoptar uma máscara conformista e que tentam manter coesa.

O falso–self não tem ideia da distância que o separa do seu ser autêntico, mas pode identificá-lo como uma parte de si a partir do momento em que, em consequência de uma psicanálise, por exemplo, toma consciência dele.

Por sua parte, como personagem garrida o típico mundano apercebe-se perfeitamente do que os outros pensam, fazem e dizem. Admira as pessoas célebres e de condição superior; um pouco como o fetichista, é atraído pelo à-vontade social, por todas aqueles que parecem não ter sofrido castração. As suas maneiras são civilizadas; sabe oferecer o presente que convirá e que agradará; o seu saber-viver é muito elaborado, e a sua companhia é geralmente apreciada.

De facto, os mundanos são, ao mesmo tempo, exibicionistas – gostam de se mostrar em todo o lado – voyeuristas – não participam do mundo, vigiam-no. Isto traduz um combate entre a angústia existencial e um insuportável sentimento de solidão.

O mundano perscruta o seu mundo para saber se este o olha. Idolatra-o, na condição de, em troca, ser também idolatrado. Porém, se o mundo lhe vira as costas, o mundano gritará de dor e a máscara cairá, para deixar aparecer o vazio.

Por sua vez, o dândi veste-se de forma estudada, enquanto o snob imita, sem discernimento, os gostos e as maneiras das pessoas que julga como sendo distintas. De origem modesta, deixa por vezes transparecer maneiras simples, até mesmo vulgares.

Em resumo, o lado exibicionista, sobranceiro e inadaptado, encontra-se presente tanto no mundano como no snob. Por seu parte, o snob pode chegar a interessar-se por uma arte ou profissão para as quais não se formou.

O dândi faz daqueles modelos formais (linhas, espaços, volumes e contrastes) um estilo de vida. Tratar-se-ia de um processo aberrante ou desviado daquele que utilizam o artista ou o escritor. Além disso, estes últimos servem-se das formas para transmitir uma emoção, um conteúdo. Pouco sensível, o dândi, pelo contrário, fetichiza as formas.

Os fetichistas experimentam um certo êxtase erótico à vista das formas, ao toque e ao odor de peças que tenham a marca do objecto sexual, por exemplo, um sapato, um colar, roupa interior, uma parte do seu corpo, um pé, o rabo, o cabelo; admiram gestos típicos, um homem beijando a mão de uma mulher, pernas que se cruzam, etc. O fetichista pode o perfume que o objecto material exala, a secreção física que dele provém. São sinais que mostram que o objecto foi usado.

Em resumo, o fetichista pretende destacar toda a riqueza do encontro sexual com um ser - a sua psicologia, a sua intimidade, as suas palpitações – de uma cosia material que lhe preservaria a essência. Deseja dispensar a humanidade do outro, ao mesmo tempo que pretende retirar dele a sua quinta-essência, o nec plus ultra.

A arte maneja as formas. A psicologia do ser humano tê-las-ia integrado ainda antes de a criança saber imaginar o pai ou a mãe; é possível que o artista seja capaz de utilizar, de modo selectivo e sofisticado, estes modelos formais (linhas, espaços, volumes e contrastes), transformando-os em efeitos sensoriais que nos tocam, o que não está ao alcance de toda gente. Enquanto espectadores, nós captamo-los e eles fazem ecoar em nós as nossas próprias experiências sensoriais primitivas esquecidas.

Ora, o artista tem intenções análogas. Empenha-se em transpor para a matéria literária ou outra, o essencial da vida. No texto ou no quadro, a vida já lá não está. A coisa far-nos-á reencontrá-la. A diferença essencial entre o artista e o perverso reside no desejo do artista nos fazer partilhar o seu estado de espírito. Admito que esta comparação possa chocar – o artista tem preocupações tão nobres, tão elevadas… no entanto, tenho o sentimento de que tais semelhanças não se deve ao acaso: o fetichista e o artista parecem seguir caminhos de re-presentação idênticos, sendo no entanto os resultados de ambos muitíssimo diferentes.

Embora possamos encontrar falsos-self em todos os meios, entre os intelectuais e os artistas são mais numerosos. Com efeito, o falso-self possui rudimentos culturais que sabem fazer valer.

Podemos, todavia, perguntarmo-nos se a nossa «sociedade do espetáculo» - que valoriza a mediatização, o reconhecimento e a avaliação públicos – não favorece este tipo de desvio psicológico, a julgar pela importância dada aos inqéritos de opinião, às hit-parades, às listas de best-sellers, aos noticiários televisivos e programas de entretenimento, etc. Não será que nos nosso dias, a verdade é aquilo que a maioria pensa?

Para concluir, sublinhemos o parentesco entre mundanidade e perversão moral. Os aspectos exibicionista, voyeurista e fetichista confirmá-lo-iam. Ao longo do caminho, fomos convidados a repensar, graças a estes casos, no papel da adaptação na identidade e no trabalho sublimado do artista. E talvez também na grande solidão: embora desejando ardentemente uma inserção social confirmada, o falso-self, o mundano e o dândi nem por isso deixam de ser grandes solitários.»


Excerto adaptado de Petit Traité des Perversions Morales, Albert Eiguer, 1997, Bayard Éditions, Paris.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

O Cínico em Política ou a Dificuldade de Governar


«Vamos agora reflectir sobre a perversão narcísica para além do indivíduo: no interior do grupo e das instituições, nomeadamente na sua governação.
O cinismo alimenta a linguagem de muitos perversos que nele encontram argumentos, aparentemente válidos, para justificar as suas acções muitas vezes de modo extremamente convincente.

Segundo a psicologia, o cínico é um indivíduo que despreza a moral estabelecida, e cuja retórica amplifica o mal e lhe elogia os méritos, a superioridade, a extensão, a razão de ser. Tem também, um discurso premonitório, oracular, anunciador de desgraças. No fundo do seu ser, encontra-se uma grande incredulidade, sobre tudo e sobre todos. O cínico acredita que pode permitir-se a tudo, pois «por mais que o ser humano se proponha atingir o ideal, a vileza domina-o». Neste contexto, o cínico teria mais «lucidez». Em resumo, esta lógica está ao serviço da dominação e da duplicidade.

O cinismo como filosofia é extremamente moral. Surgido na Grécia antiga, apresenta-se como uma forma de contestação social e reclama-se de uma ética do verdadeiro que incita à crítica dos desvios da civilização, aviltada pelo dinheiro, pelo gosto do poder, do luxo, e dos prazeres fáceis. Em suma, é um casamento entre a ecologia e o anarquismo.

No sentido psicológico, pelo contrário, o cinismo está ligado no essencial à perversão: permite justificar as vantagens retiradas das situações ilícitas. Porquê aceitaras restrições, submeter-se ás restrições, quando no fundo se pode ter prazer fazendo batota? Numa primeira abordagem, o discurso do cínico expõe ideias negativas: a alma humana nada encerra de nobre, o amor é uma auto-sugestão, o futuro é incerto ou mesmo catastrófico, etc. utilizando à vontade sarcasmo e causticidade, o cínico justifica a sua estratégia egocêntrica de procura do prazer como absoluto.

No político, por exemplo, o cinismo alimenta a vontade de desarmar o campo dos adversários dividindo-os, atiçando as suas divergências. Ou criando alianças, a fim de neutralizar potenciais concorrentes. O cinismo adopta uma forma directa, que consiste em ridicularizar bons sentimentos e atitudes desinteressadas, ou uma forma directa que visa desvendar e explorar a pretensa «falta de integridade dos rivais políticos, o seu apetite pelo poder, a sua estreiteza de vistas ou a sua impostura».

A imagem mais corrente do cínico em politica é a do político que utiliza qualquer meio para atingir os seus fins. Se tem responsabilidades e cargos públicos, está disposto a tudo para permanecer no poder. O segredo, a mentira, a violência ilegítima exercida contra os cidadão, a utilização das imperfeições e das falhas da lei escrita a seu favor: aos seus olhos, tudo se justifica. O seu princípio é a razão de Estado, ou seja, a sua.

O cinismo infiltra o discurso do político que elogia perante o povo os méritos de uma situação que na verdade lhe é, ao povo, prejudicial. É o caso do líder populista ou do demagogo, que apenas oferece benefícios imateriais ou vantagens menores, mais simbólicas do que reais, em vez de pão e liberdade. O que ele quer dizer é: «Amai-me, tende orgulho no vosso líder, que vos compreende, que é sensível aos vossos sofrimentos e aos vossos pedidos». A simples elevação espiritual, por si só, deveria ser suficiente para os contentar. O nacionalismo presta-se especialmente bem a isso, porque está enraizado no amor ao território e nas ligações, sociais e psíquicas, altamente simbólicas.

O demagogo nada oferece de consistente; limita-se a prometer, suscitando a esperança e a paixão. Por vezes diverte. O espectáculo é atraente, porque alimenta no cidadão médio o sentimento ilusório de penetrar no interior do microcosmo dos homens do poder, podendo assim identificar-se com o líder. Com efeito, o demagogo é visto como um pai e concentra sobre ele expectativas idealizadas das suas causas. Sabe fazer brotar sensações, como um ilusionista, pô-las em palavras e articulá-las em imagens.
Em resumo, trata-se de criar a ilusão. Todavia, este processo não é exclusivo do demagogo. Existe em todo o homem de poder. Simplesmente, o demagogo é igualmente cínico: sabe que nada oferecerá.

A priori o cínico é um ser irritante, frequentemente gozador e nada simpático. Por isso, é difícil imaginá-lo a fazer política. Como explicar então que o cinismo impregne tão intensamente o projecto geral de alguns políticos e a sua actuação?
Com efeito, o cínico é um mestre na arte de fazer crer regularmente ao povo que foi demasiado mimado e a que a partir de agora tem que aceitar as restrições. Segundo o cínico na política, vale mais mentir ao povo (ou omitir) do que fazê-lo sofrer uma desilusão: «uma ideia não tem culpa se o povo acredita nela».

Já Platão avançou a ideia de que «o Estado perfeito» não pode dispensar a mentira, a falsidade e a hipocrisia. Para Maquiavel, os resultados obtidos legitimam os meios.
Depois da ascensão ao poder, o verdadeiro problema do cínico é o que fazer para manter esse mesmo poder. Assim, a política deve instituir a sua própria moral, estranha aos nossos hábitos.

Apesar de tudo, Maquiavel é sincero ao explicar que o chefe de Estado (ou o líder) pode usar todos os meios, mas deve começar pelos mais «diplomáticos». Se estes últimos se revelarem ineficazes, a violência torna-se autorizada. Para vencer, é necessário deslizar do fingimento ao assassínio, da hipocrisia à expedição punitiva, do furto à pilhagem, i, é, na impossibilidade de exercer um controlo, passa-se ao ataque.

O povo é cúmplice?

O cinismo é um meio eficaz para alcançar o poder e é nitidamente mais pacífico do que um golpe de Estado ou a guerra civil. A astúcia é mais eficaz do que força, menos ostensiva e mais difícil de provar. Um poder conquistado pela violência facilmente se torna ilegítimo; necessita de um aparelho repressivo que mantenha a população no terror, o que fornece aos oprimidos o pretexto para o substituir.

Pode-se pensar que o cinismo em política surgiu com o enfraquecimento do poder feudal, arriscando-se a sociedade a liberalizar-se demasiado aos olhos dos novos senhores. É preciso também concordar que a democracia engendra políticos que são cínicos desde o princípio da sua carreira, ou que se tornam cínicos quando deixam de acreditar na sua própria mensagem e na justiça do seu ideal, ou porque a realização do seu programa lhes faz medo: medo daquilo que são capazes de realizar.

No fundo, a política não é mais do que uma maneira de organizar o governo da cidade. No entanto, muitos cidadãos pensam que um homem de Estado deve modificar-lhes ávida, apaziguar-lhes a alma, influir nas ligações íntimas com os que lhes são próximos e melhorá-las.

Em período eleitoral, desenvolve-se uma crença: o homem político, que exerce altas funções, teria a capacidade ilimitada de influenciar todos os campos, de modificar tudo. Reencontramos aqui o sentimento infantil de omnipotência parental. No momento das eleições, o cidadão tem um pouco a impressão de poder pedir tudo o que quiser aos pais (os políticos). Em seguida esses pais idealizados (os políticos) vão concorrer entre eles para obter os favores daqueles filhos (os cidadão eleitores), adulando-os ou fazendo-lhes promessas. Está aqui a fonte do famoso pacto entre o homem de poder e o seu povo, pacto que dura enquanto a ilusão persiste.

O político serve-se daquela projecção idealizante sobre si. É essa a regra do jogo social, incontornável, inclusive fundadora das relações do indivíduo com os seres humanos, o grupo, a família, até à instituição e ao país.

Desde Roosevelt, todos os presidentes americanos elogiam o ideal da nação americana conquistadora e do melting-pot, onde cada cidadão poderia ter êxito e conquistar um lugar, independentemente da sua origem ou condição social. No entanto, isso não é, de todo, da responsabilidade dos homens políticos. O destino pessoal do cidadão está apenas nas mãos dos indivíduos que adoptam ou não um mito social.

Os políticos são uma espécie à parte?

Os políticos não são diferentes dos seres que têm um gosto especial pelo domínio. É comum identificarmos neles características fortemente narcísicas quando se consideram infalíveis, como sendo portadores de uma missão, ao recusarem a crítica, ao ignorarem os insucessos ou a sua queda de popularidade e não se preocuparem com a moral quando pretendem liquidar um rival, mesmo que este pertença aos seu próprio campo.

É importante porém reforçar esta ideia: não é a pessoa do político que convém designar de narcísica; é a sua função que cria as condições favoráveis para que ele o seja, a partir dos seus traços de personalidade. Toda a nação o deseja «inconscientemente». Se os políticos gostam tanto de conduzir, é também porque o povo sobrevaloriza essa tarefa. O que conta aqui é o lugar e o papel esperados e não o desejo individual.»

Excerto adaptado de Petit Traité des Perversions Morales, Albert Eiguer, 1997, Bayard Éditions, Paris.

Gato Fedorento - Assim não

Brandos costumes ...Vícios privados, públicas virtudes

terça-feira, 22 de maio de 2007

O Perverso-Narcísico ou o mestre entre marionetas


« Em pessoas egocêntricas, espoliadas ou feridas no seu narcisismo, o apetite de veneração leva-as a procurar junto de terceiros um «alimento» que as reconforte no seu amor-próprio como se a desvalorização dos outros, muitas vezes secreta, lhes devolvesse algum valor sobre si mesmos aos seus próprios olhos.

O mesmo efeito pode ser obtido através da manipulação do outro, levado a agir e a desempenhar certos papéis segundo os seus desejos do narcisista. Ao mesmo tempo que procura «absorver» algumas qualidades de quem manipula, o perverso-narcísico deposita naquela outra pessoa sentimentos que não aceita em si mesmo, julgando-os como insuportáveis.

A sua dependência é tão grande que ele expõe todo um arsenal manipulador para a recusar. No entanto, o perverso-narcísico procura ignorar a sua confusão; é demasiado orgulhoso para a assumir, o significaria aceitar a sua necessidade de outrem.

Este carácter, que nos parece monstruoso ou diabólico, é por vezes totalmente inconsciente para o narcísico. Ele faz valer, sobre estimando-as, as suas qualidades próprias, a sua intenção moral irrepreensível, de tal forma que os outros se sentem orgulhosos de manter com ele um relacionamento.

Considerar-se-á por vezes ignorado, ofendido ou maltratado por outra pessoa, a fim de vencer as reservas desta última. Ou então, pelo contrário, saberá excelentemente pedir desculpas, pedir perdão por faltas menores, etc. e pode até induzir culpabilidade no outro, mas sem o acusar.

As condutas do perverso-narcísico remetem para três atitudes de base: utilitária, utensilitária e predação moral. Ou seja, pode procurar utilizar o outro, tratá-lo como um instrumento, ou então «absorver» o seu entusiasmo, a sua paixão.

O outro, como objecto, só é tolerável para o narcisista na medida em que se presta a desempenhar papéis secundários, e depois o papel de marioneta. A manipulação do outro passa também pela observação conveniente dos seus ideais, das suas necessidades e fragilidades. Na apropriação mais profunda liberta-se o apropriamento do outro e são numerosas as formulações que visam aumentar a veneração: «Sei melhor do que ninguém o que tu pensas e o que tu queres. Vês como me sacrifico por ti; sacrifica-te tu também. Mais ninguém te amará como eu», etc.

A marquesa de Merteuil (no célebre romance As Ligações Perigosas, de Chorderlos de Laclos, 1722) estica os cordelinhos, propondo-se ao seu antigo amante, visconde de Valmont, como sacerdotiza do amor. A intriga inicia-se depois da marquesa recusar entregar-se a Valmont, propondo-lhe primeiro um pacto perverso: ela aceitá-lo-á caso ele consiga obter os favores sexuais da Senhora De Tourvel, mas será preciso que Valmont apresente uma prova escrita (neste caso, uma carta amorosa reveladora).

No romance, o visconde de Valmont lança-se à conquista de Mme De Torvel, que à partida rejeita as suas investidas. Então ele inventa novas astúcias, simula tormentos, gere silêncios, evoca a sua boa-fé, prova a sua generosidade e devoção. Agarra-se ao seu projecto galante e, quando a determinação enfraquece, a marquesa elogia-lhe os méritos de Mme De Tourvel, desvendando nela o ser sensual que se ignora.

Outro personagem diabólica, Iago, na tragédia Otelo (Shakespeare, 1604), separa, divide, atiça o ciúme. Ao contrário da marquesa de Merteuil, que aproxima os amantes, Iago ataca a ligação de Otelo e Desdémona, lançando Otelo contra Cássio, seu dedicado lugar-tenente.
Quando o intrigante não consegue dominar, aproximar os amantes, modelar um espírito ou orientar a sua carreira, prefere então separar, criar o conflito. Todavia, é mesmo a pulsão da morte que inspira estes movimentos.

Como reconhecer o perverso-narcísico e proteger-se dele

«Aquela perversão pode ser detectada através dos efeitos que provoca à distância sobre o outro. Após um movimento de entusiasmo, em que se sentem extremamente exaltados e revigorados, os alvos do perverso-narcísico começam a sentir as agruras do abandono, da dor, da perplexidade, da inibição e da impressão de nulidade: no melhor dos casos, a sensação de terem desbaratado seu tempo, no pior o de terem perdido algo de precioso. A maior parte das vezes, é tarde demais: a promessa era grande e o risco parecia mínimo.

Através do seu comportamento podemos assinalar o perverso-narcísico pelo facto de insistir em que tem sempre razão e não tem culpa de nada. Descreve-se como nobre, generoso, desinteressado; encontra-se justamente a realizar uma obra de bem: educar, salvar, proteger, ajudar à realização de uma carreira. Mas digam-lhe que acabaram de ser promovidos e ele responderá que também ele conheceu essa felicidade ou é responsável por ela. Quem for moral e respeitador da dignidade dificilmente escapará ao seu poder.

De facto, a melhor maneira de nos protegermos consiste em perguntarmo-nos que cordelinho fez ele vibrar em nós e qual a fraqueza que procurámos reparar ao integrá-lo na nossa existência. Apenas para nos precavermos…até à próxima vez.»

Excerto adaptado de Petit Traité des Perversions Morales, Albert Eiguer, 1997, Bayard Éditions, Paris.

terça-feira, 15 de maio de 2007

O Processo de Luto / Perda


Como elemento basilar do imemorável acesso da espécie humana à consciência, o luto é uma experiência angustiante mas inevitável.

Porque a morte ou a perda são naturais consequência sequênciais da vida, quase todos sofreremos a perda de alguém afectivamente significativo. No entanto, no nosso dia-a-dia, pouco abordamos o tema da perda ou da morte, pelo que muitas vezes evitámo-los pelo desconforto emocional que habitualmente os temas suscitam.

A atitude perante a perda ou a morte é variável de pessoa para pessoa, mas geralmente nos países mais desenvolvidos, a morte é tida como algo extraordinário, afastado da realidade mais pessoal, muitas vezes fundamentadas por crenças irrealistas sobre o poder da tecnologia disponível ou das ciências biomédicas.

Não obstante, na dinâmica da Natureza é excepcional o facto de actualmente depararmos com a situação de morte com menos frequência e mais tardiamente do que aquilo que acontecia com os nossos antepassados, para quem a morte de um irmão ou irmã, amigo ou familiar era uma experiência comum tida mais frequentemente durante toda a vida, seja enquanto crianças, adolescentes ou adultos.

Provavelmente como silenciosa consequência do desenvolvimento socioeconómico, logo tecnológico e científico porque deles beneficiamos cada vez mais de geração para geração, as perdas significativas por morte geralmente sucedem tendencialmente mais tarde no desenvolvimento das pessoas, ou seja cada vez mais no início ou no decorrer pleno da fase adulta.

Quando estamos poucas vezes perante situações pessoais de morte e de luto, menos condições teremos para desenvolver competências de resolução adequadas ao decorrer do processo de resolução da dor emocional, sentimental ou psíquica i.e. estaremos menos preparados para resolver as circunstâncias em que tenhamos que assimilar a perda de alguém significativo.

Quero com isto dizer que a espécie humana, ao aumentar a esperança média de vida pode ter originado uma consequência perversa, a de tornar os elementos de sociedades mais desenvolvidas também mais vulneráveis perante aquilo que a morte faz sentir, desconhecedores de como deverão agir para a resolução da situação, menos capazes de identificar o que é "normal" acontecer, ou de como integrar o acontecimento na vivência quotidiana e prosseguir naturalmente a existência.

No decorrer desta reflexão: irei tentar esclarecer algumas das características principais do luto por morte, mas também é aplicável à perda de pessoas emocionalmente importantes, como por exemplo, rupturas relacionais significativas. Espero contribuir para a compreensão funcional do processo de re-elaboração do mapa emocional, e ambicionamos que seja um incentivo à resolução adequada do sofrimento e à acção adaptativa perante as perdas.

O Processo habitual de resolução do Luto / Perda

O processo de luto ocorre quando existe uma perda, mais frequentemente após a morte de alguém que amamos, mas também após separação ou perda de alguém significativo. O Luto não se trata de um único sentimento, mas de um conjunto complexo de sentimentos que necessitam de algum tempo para serem entendidos e resolvidos; não devem pois ser apressados.

A forma como se resolve habitualmente uma situação de luto é muito semelhante na maior parte das pessoas, apesar das diferenças individuais no modo como o realizar. Embora o luto ocorra geralmente depois de perdermos alguém afectivamente importante que conhecíamos há algum tempo, o mesmo poderá surgir noutras ocasiões, como por exemplo depois de um aborto (I.V.G.), perante o óbito de um recém-nascido ou quando perdemos um filho muito precocemente.

Um processo de luto pode ocorrer antecedido de um processo stressante, muitas vezes depressivo, como nas situações em que se antecipa um falecimento eminente mas indeterminado no momento preciso, como sucede no caso dos doentes terminais. Estamos perante ligações afectivas que se rompem definitivamente sem possibilidade real de continuidade futura, pelo que o organismo demora algum tempo a actualizar a percepção da nova realidade, a vivê-la adaptativamente de modo satisfatório e gratificante, desta feita na ausência de quem se perde.

O Choque e a Negação e o emergir da Tristeza.

No momento em que se toma conhecimento da ocorrência do falecimento ou quando estamos perante um facto revelador da perda de alguém emocionalmente significativo, nas horas e dias seguintes à morte ou perda desse outro importante, é comum a sensação de "atordoamento", como um Choque como se não pudessem ou não conseguissem acreditar que algo tenha ocorrido. De seguida, maioria das pessoas passa por uma fase de descrença, de incredulidade, de Negação. Mesmo quando a morte ou o fim de uma relação eram esperadas, este de sentimento de descrença pode surgir.
Também é habitual este sentimento de torpor ou dormência emocional poder ajudar a levar a cabo todas aqueles procedimentos burocráticos inerentes ao processo de tratar de um funeral, mas pode tornar-se num problema se continuar a subsistir.

Ver o corpo da pessoa falecida pode, para alguns, ser um modo importante de começar a ultrapassar tudo isto. Da mesma forma, para algumas pessoas, o velório e o enterro podem ser situações onde a realidade é progressivamente enfrentada através da consciencialização do simbolismo dos rituais de luto.

Apesar de ser difícil lidar com estas situações, o facto é que elas constituem um modo de nos despedirmos da convivência daqueles que amamos. Na altura, estes acontecimentos podem parecer demasiado dolorosos para que sejam vividos mas o facto é que procurar escapar aos mesmos pode resultar no prolongamento do sofrimento de que se quer afastar.

O sentimento de tristeza tornar-se-á mais evidente e em breve o organismo irá percepcionar como uma ameaça o despontar do sofrimento e reagirá de modo psico-fisiológico inato perante a gradual tomada de consciência da dor, em resultado da confrontação com as evidências frustrantes da nova realidade.

Culpa, Ansiedade e Revolta

Na sequência das fases de choque, negação e tristeza, sucede não raramente um período o sentimento de culpa. Nesta altura, começam a pensar em tudo aquilo que podiam ter feito ou dito e que já não tem retorno ou mesmo naquilo que podiam ter feito para impedir essa morte. Não é raro acontecer a atribuição repartida da culpa por si próprio, aos outros ou até mesmo à pessoa que morreu.

A culpa também pode surgir depois de se sentir alívio pela morte de alguém que nos era muito querido mas que sabíamos estar a sofrer. Este sentimento é normal, compreensível e muito comum. Sendo a morte geralmente um acontecimento que está para além do controlo seja de quem for, é crucial que a pessoa em luto se recorde ou seja recordada disto mesmo.

Concomitantemente é comum surgirem comportamentos de grande agitação, de ânsia pelo que foi perdido. Surge habitualmente o sentimento de querer reencontrar essa pessoa que se perdeu seja de que maneira for, mesmo que seja evidente que tal é impossível.
Na fase aguda da sintomatologia ansiosa, o enlutado começa a não conseguir relaxar ou concentrar-se e o sono pode ser perturbado. Tende a instalar-se uma activação psicofisiológica, em que a tensão muscular, a alteração cardíaca, os pensamentos ameaçadores e distorcidos, a respiração irregular, a vontade impulsiva de agir, imperam e incomodam mesmo em estado de repouso.

Os sonhos que surgem nesta fase de ansiedade e de angústia podem ser muito confusos e algumas pessoas chegam mesmo a "ver" quem perderam, na rua, em casa e em todo e qualquer lado que os faça lembrar o ente querido.

Com muita frequência, a pessoa em luto sente-se muito zangada e revoltada - contra médicos e enfermeiros que não conseguiram impedir a morte que agora lhe pesa, contra os amigos e familiares que nunca deram o seu máximo para evitar a perda ou mesmo contra a pessoa que desapareceu.


A Tristeza, a Depressividade e a Depressão

O estado de agitação ansiosa antes referido é geralmente mais forte nas duas semanas que se seguem à morte do ente querido ou à perda da pessoa significativa, mas segue-se rapidamente de períodos de grande tristeza, retiro e silêncio. Esta mudança súbita de emoções pode deixar amigos e familiares confusos, mas faz parte do processo natural de luto.

Apesar da agitação começar a cessar, os períodos de profunda tristeza após a perda de alguém significativo tornam-se mais frequentes e atingem geralmente a máxima intensidade passadas quatro a seis semanas do sucedido. Ao bloqueio nesta fase, chamamos depressividade e ao seu agravamento em intensidade e duração, atribui-se o estado de Depressão.

Tal não quer dizer que, para todos as pessoas, estes intervalos de tempo sejam absolutos, podendo variar caso exista uma situação de bloqueio evitante da dor que surge perante ameaça da tomada efectiva de consciência, adiamento esse mantido por comportamentos fóbicos ou de evitamento, por exemplo. Estes podem bloquear por períodos longos ou distorcer a consolidação de cada fase e a resolução adequada do processo de luto.

Quando ocorrem comportamentos de bloqueio, prolongados no tempo, na fase de depressão poderá desenvolver-se uma perturbação de Luto Patológico ou quadros de sintomatologia Psicótica emergentes.

No caso do Luto “normal” há pessoas que parecem não passar pelo processo de luto, que não choram no funeral, que evitam falar da pessoa que perderam e que voltam à sua vida "normal" rapidamente. Esta é a sua forma normal de lidar com a perda sem consequências negativas. Outras pessoas poderão, ao contrário, sofrer sintomas físicos e passar por episódios repetidos de depressão nos anos seguintes.

Em alguns casos, as pessoas podem não ter a oportunidade de passar pelo processo de luto da melhor forma, uma vez que têm de continuar a sua vida profissional ou familiar, não tendo tempo para o fazer. Por vezes, o problema é que a perda sofrida não é vista como suficientemente forte para que seja necessário um luto, por exemplo, depois do nascimento de um nado morto ou depois de uma IVG (vulgo aborto).

Noutros casos de pendor patológico, as pessoas podem iniciar o processo de luto mas permanecer ad eternum no mesmo, sem o resolver. Nestas situações, a dor e a angústia por quem se perdeu mantêm-se e podem mesmo passar anos sem que a situação seja realmente resolvida. Por exemplo, a pessoa pode continuar a não aceitar que perdeu quem faleceu, mantendo-se na fase de negação ou, por outro lado, só conseguir pensar em tal pessoa, mantendo, por exemplo, o quarto da pessoa falecida intacto e como uma espécie de local de culto. Estes comportamentos são disfuncionais e devem ser sanados.

A insidiosa passagem da Tristeza Depressiva à Depressão

A sintomatologia depressiva manifesta-se habitualmente por crises de choro e angústia intensa que podem surgir a qualquer momento, sendo habitualmente despoletadas por pessoas, sítios, datas ou acontecimentos que fazem lembrar quem se perdeu. Alguns enlutados podem não conseguir perceber estas crises ou ficar sem saber o que fazer quando isto sucede; estas situações são bastante desconfortáveis pelo que daqui poderá surgir uma tendência de evitamento fóbico no sentido de passar a evitar as outras pessoas, lugares ou situações que provocam o desconforto, neste caso, originado pela sintomatologia da tristeza depressiva.

A estada prolongada numa postura depressiva pode trazer problemas futuros e, por isso, será melhor que volte à sua "vida normal" o mais rapidamente possível.

Apesar dos sentimentos de pendor impeditivo à adaptação célere, como os de desmotivação ou desesperança, deverá esforçar-se por retomar a vivência de hábitos organização pessoal (alimentação, higiene do sono, actividade física regular, passatempos, exercícios de alongamento e relaxamento psico-fisiológico, etc.) bem como reinvestir na continuidade afectiva, familiar e profissional que permanece como a envolvente dinâmica da sua existência.

Durante o decorrer daquele período emocionalmente turbulento, pode parecer estranho aos outros que a pessoa em luto passe muito tempo sentada, sem fazer nada, mas o facto é que ela estará a pensar em quem perdeu, recordando constantemente os bons e os maus períodos que passaram juntos.

Durante o processo, mas principalmente quando existem indícios de bloqueamento defensivo, os pensamentos tendem a ser circulares, ou seja, incidem sobre a ausência da pessoa, a memória de situações passadas, de características de personalidade, juntamente com sentimentos de angústia, de incerteza sobre o futuro, de desânimo, etc. Esta é uma fase silenciosa mas essencial à resolução do sofrimento. No entanto, permanecer demoradamente nela pode levar a um impedimento no processo normal de resolução do lutoe ao bloqueio na Depressão.

Os comportamentos de evitamento fóbicos ou outras atitudes de fuga ao sofrimento poderão provocar alterações significativas no funcionamento emocional, afectivo ou social; neste último, a actividade profissional pode vir a ser prejudicada, noutras serve como fuga à dor ou compensação à sensação de perda relacional.

Para fazer prosseguir o processo de luto até à sua resolução, há que descobrir os erros de análise ou distorções de pensamento induzidos pela desordem emocional e insistir numa acção construtiva, procurando regularizar, com a adequada brevidade e temperança, o processo de contacto com a realidade e o decorrer normal dos dias, já sem aquele outro que se perdeu.

Devemos recordar que, à medida que o tempo passa, a angústia intensa resultante do luto começa a desaparecer. Os sentimentos de depressividade atenuar-se-ão progressivamente e em breve começará a pensar noutros assuntos, até mesmo em projectos para o futuro.

É ainda importante compreender e aceitar que o sentimento de perda provavelmente não desaparecerá por completo, mas depois de algum tempo, mesmo apesar de poder sentir que falta uma parte de si que nunca será substituída, estará disponível para continuar a vida, agora adaptado à nova realidade, com todos o que o rodeiam e com todos os outros recursos que estão incluídos no seu presente e futuro próximo.

Familiares e amigos: como podem ajudar?

A família e os amigos podem ajudar a pessoa em luto simplesmente mostrando a disponibilidade de tempo para estar com ela. Não se trata de insistentemente falar com ela sobre o sucedido, mas sim de estar perto, escutar atentamente, dar afecto e alento para reagir progressivamente à situação. Importa demonstrar que estão todos estão juntos para o que for necessário neste período de dor e tristeza.

É importante que a pessoa em luto, se necessitar, procure amigos com quem falar e chorar sobre a perda sentida, sem que a pessoa amiga lhe esteja permanentemente a dizer para se recompor e refazer a sua vida. Com o tempo, o enlutado recompor-se-á, não sem que antes disso tenha de chorar a pessoa perdida e de falar sobre ela.

Se algumas pessoas terão dificuldade em perceber porque é que se mantêm sempre no mesmo assunto, ao invés de o ultrapassar, o facto é que este processo deve incluir também esta fase porque só dessa forma poderá ser ultrapassado. Desta forma a pessoa em luto terá a oportunidade de nos dizer o que deseja e como se sente.

Finalmente, não nos devemos esquecer que datas importantes (o dia do aniversário, do casamento, etc.) ou lugares, poderão ser particularmente difíceis de reviver e pôr a pessoa em luto a participar activamente na preparação de tais celebrações poderá ajudá-la a não se sentir tão sozinha. Evitar experimentar e sentir tais situações poderá de futuros problemas emocionais e comportamentais desnecessários.

É importante dar o tempo necessário à pessoa em luto para que o possa enfrentar tais lugares ou épocas do ano, até aprender gradualmente a sentir-se confortável perante tais momentos.

As repetições de padrões amorosos disfuncionais


Os construtores de relações/destruidores de corações.

A questão não é nova mas em todas as latitudes, muitas pessoas sentem uma atracção perversa por tipos de individuos perigosos, muitas vezes mal-tratantes ou marginais. Gosto pela aventura, vocação maternal, vontade de regeneração, vitimização inconsciente, masoquismo?

Pois...poderão ser qualquer um daqueles aspectos mas importa analisar quais os traços de personalidade prevalecentes nas pessoas que agem em função da repetição de padrões de comportamento e saber o que ela percepciona quando contempla a sua imagem ao espelho da alma, ou seja, não é tanto como se vê através do olhar dos outros mas sim o que vê quando se observa através da consnciência de si.

Frente a si própria, o que é que lhe é devolvido? Será a imagem de um ser humano assertivo, consciente da seu passado e com o potencial para agir conscientemente para mudar as coisas ou verá reflectida a imagem de uma vítima à mercê de tudo o que acontece?

O papel da vítima não é uma justificação plausível

As pessoas que se enamoram são inteligentes, não sendo de todo tão inocentes e ingénuas que possam simplesmente deixar-se ir na conversa fiada do mauzão sedutor.

A partir do momento em que uma pessoa aceita um papel simplesmente passivo na dinâmica da sedução, desvaloriza o carácter do Ser e adopta um papel estereotipado no qual é a suposta “presa” à mercê do poder alheio. De facto, para quem é seduzido existe um gozo imediato (aceite ou negado, conforme as pessoas e as situações) que pode permitir a possibilidades do sedutor agir como “predador” e o seduzido agir como "presa".

Ao longo da história, a recolocação do seduzido no tradicional jogo de sedução e na postura do que é ser sedutível, resultou numa posse efectiva de poder, sendo este, de facto, enorme; é grande o poder de quem é seduzido porque permite e se deixa seduzir, sendo que o sedutor tem um poder relativamente frágil.

O sedutor faz o seu papel de conquista, inevitávelmente dependendo da concordância de quem permite a continuidade da sedução. A partir do momento em que o seduzido agir de modo infantil, imaturo, inocente, vai ser, de facto, uma presa frágil nas garras do predador sem que se aperceba que está a desrespeitar-se ao alienar o intrínseco poder pessoal da posição do seduzido que permite ou recusda a continuidade da sedução. No entanto, não é só a pessoa ingénua ou imatura que corre o risco ao escolher os seus parceiros, não sendo por ser mais ou menos ingénua ou experiente que a pessoa escapa às desilusões amorosas.

Então, o que faz a repetição para relações com destruidores de corações?

Em primeiro lugar, convém analisar a personalidade que estará por detrás de um destruidor de corações e identificar alguns dos comportamentos que são tidos como modos de sedução atraentes para o seduzido.

Por exemplo, pode ser o tipo de linguagem usado pelo sedutor aquilo que proporciona uma comunicação romântica e atraente para além da comunicação básica. Ou pode ser um determinado tipo de comportamento ou estilo que apela às referências e antecendentes do seduzido. Geralmente o destruidor de corações é alguém muito agradável, que consegue manipular emocionalmente e/ou sexualmente os outros sem se colocar no lugar do outro mas sempre em função dos seus próprios interesses egoístas. A manipulação sedutora pode muito bem preencher as necessidades egocentricas do seduzido, porque se faz através das manifestação do interesse do sedutor sobre a pessoa do seduzido - olhares lânguidos, gestos íntimos, palavras doces, avanços excitantes, etc.

Mas sendo o típico sedutor o lobo mau porque destrói, fere, magoa e sai de cena, porque aceita o seduzido a aparente bondade sedutora do animal e porque se repetem os episódios de atracção e os erros de relacionamento, num padrão repetitivo e circular de experiências amorosas decepcionantes?

Só se destrói o que se construíu e isto é o cerne da questão.

Se uma pessoa permite espaço para a construção de alguma coisa, há a possibilidade da sua destruição a posteriori. O sedutor teve acesso a este espaço e também contribuiu para a sua construção, uma vez que não há destruição no vazio. Talvez seja mais correcto dizer-se que os sedutores compulsivos agem repetidadamente como construtores de relações/destruidores de corações.

Mas para quê ter o trabalho de construir uma relação, quando se antecipa que tudo se desmoronará com um sopro do lobo mau? Precisamente porque é o processo de conquista que é atraente e reforçador da repetição das sucessivas tentativas de preenchimento de um ego frágil que necessita de manter a ilusão de poder sobre os outros para deste modo continuar na sua eterna fuga de si próprio e das suas lacunas. Estas relações terminam logo que termina o processo de demonstração egocêntrica de poder através da conquista, isto é, assim que termina a fonte de alimentação do ego frágil do sedutor através da captura da sua presa, o seduzido. Note-se que para o próprio seduzido o processo também é idêntico, no qual que o preenchimento do ego vazio de amor-próprio do seduzido se dá através da demonstração do interesse do sedutor.

Trata-se assim de uma efémera colaboração simbiótica de Dominação/Dependência, na qual o poder efectivo (que durante o processo de seduão se encontra do lado do seduzido) se desloca de facto para o sedutor assim que este completa o seu objectivo, a conquista do objecto que alimenta a sua fragilidade, sempre negada. Para o seduzido, é aqui que se revive o pesadelo repetitivo da destruição da relação e do abandono, que por sua vez, reforça a sua permanente posição carente de amor próprio e dependente dos outros.

Importa não idealizar nem alimentar a ilusão.

É muito importante não se projectar a noção ideal de homem(ou de mulher) no parceiro que se têm, que teve ou virão a ter. A projecção é um mau princípio, já que o nosso boneco mental não tem reflexos na vida real, i.é, os outros não são aquilo que gostariamos de ser, muito menos aquilo que nos habituamos a pensar que deviamos ter.

Quando uma pessoa se apaixona de forma arrebatada, tende a projectar no outro uma série de desejos e fantasias. Mais do que as características do outro, sobrepõem-se as suas próprias singularidades investidas na relação. Sendo tal projecção uma ilusão consentida, normal será o advir de desilusão, sendo esta vulgarmente recebida como não fazendo sentido e/ou como sendo inesperada, não o sendo assim de facto.

Importa ainda reflectir porque é que certas pessoas nos estimulam mais a curiosidade ou nos estimulam mais do ponto de vista físico do que outras. O que poderemos tirar dessa reflexão é que, com os anos e a experiência de vida, podemos gradualemente prever com mais inteligência intuitiva e apostar ou não numa relação.

O sedutor é uma pessoa boa ou má?

Mas porque é que o destruidor de corações não é tido, no sentido lato do termo, como uma boa pessoa? Porque é que o lado bom que contêm a sua sedução, quase sempre como um suporte aparentemente sólido para os outros, não é efectivamente sentida dessa maneira à posteriori?

Na maioria das vezes, consideramos alguém como má pessoa quando não corresponde aos nossos desejos. Mas essa má pessoa também é boa pessoa no sentido em que nos influencia de alguma forma, nos faz viver e sentir coisas novas ou renovadas. Este posicionamento dicotómico, esta distorção de cognitiva do tipo "tudo ou nada" é revelador da fragilidade dos mecanismos de percepção implícitas na avaliação românticas e de relacionamento, seja nos momentos de sedução seja na continuidade relacional.

Se há um desajuste de visão da relação ou persite uma projecção ilusória do outro na relação ao longo do tempo, estamos a falar de um outro aspecto da vida quotidiana, i.é, a situação em que as pessoas têm facilidade na manifestação das emoções através do sexo e muita dificuldade nos afectos. Os engates ou a passagem ao acto extra-conjugal são exemplos da perturbação na capacidade de gerir impulsos, de assumir sentimentos e direccionar uma manifestação madura de afectos.

Mas voltando ao "lobo mau", que bom fenómeno incendiário desencadeou, que fenómeno de bondade atraíu as suas presas para que as fizesse sentir tão vivas e assim, ter depois o privilégio de ser considerado mau a posteriori ? Que características terá o destruidor de corações que, de alguma forma, obriga o seduzido a reinventar-se e a mexer com coisas internas?

O seduzido sabe, ou intui saber, antecipadamente que o sedutor não é a pessoa ideal para construir o tipo de relação que se pretende. No fundo, muitas vezes é o próprio seduzido que quer evitar o risco de uma relação de permanência no tempo, a qual exige muito esforço e empenho da sua parte. Um pouco como aquelas mulheres que preferem homens com compromissos, que só escolhem homens casados. Não será esta atitude uma forma de fuga a um relacionamento sério? Parece ter um valor utilitário, isso sim, o do preenchimento do vazio afectivo originado pelo desinvestimento afectivo em si.

Esta escolha inconsciente funciona para as duas partes: os sedutores-lobo mau querem um pico incendiário, que tenha muita concupiscência e que seja muito físico, de modo a completar o objectivo compensatório originado na conquista do outro; Os seduzidos-vítimas desejam ser desejados e agem em função da fuga a uma relação de construção no tempo, quase sempre imaginada como trabalhosa porque é antecipada como um padrão repetitivo de desilusão, assumindo assim o seu papel numa relação pontual e fugaz. Qualquer um dos dois está no mesmo registo.

Auto-sacrificados: Cuidar do outro sem cuidar de si

Há também aquelas pessoas que se sentem determinadas a curar os sedutores. Como interpretar esta vontade de regeneração?

São comuns os casos de pessoas que, ao verem uma disfunção no outro querem tratá-lo mas, ao mesmo tempo, descuram-se a si próprias. Enquanto tratam o outro, não têm o cuidado de parar, olhar para si e verem aquilo que precisa de ser curado. Os auto-sacrificados sentem que alguma coisa nelas que não está bem e isso pode ser muito ameaçador para quem não se ama suficientemente de modo a enfrentar com segurança e afecto a dor de crescer, daí deslocarem preventivamente para o outro a atenção que identificaram como sendo necessária para si, em que o indício principal está no esquema de compensação implícito no querer cuidar dos outros.

Deste modo, tentar mudar as coisas no outro pode também significar a fuga ao olhar para dentro, evitando assim uma suposta dor que se julga não ser possível aguentar. E este processo é também agravado uma vez que a partir de certa faixa etária podemos mudar comportamentos mas é muito difícil mudar os traços de personalidade; Mesmo o facto de se mudar alguns comportamentos não implica mudar o indivíduo.

Numa relação de afectos, não há vítimas e carrascos, mas antes pessoas que escolhem consoante as características em presença: o dependente e o dominador, o que foge e o que agarra. É como o jogo do polícia e do ladrão.

O ciúme como factor no jogo relacional disfuncional

Um dos jogos que os seduzidos mais gostam é o de entrar em pura competição com os rivais que lhe anda a roubar a atenção do (seu) sedutor, o qual se mantém na categoria de mau e, agora, ganha também o rótulo de infiel. O objecto de desejo torna-se ainda mais desejado a partir do momento em que existe um terceiro elemento na relação. Algumas vezes, certas pessoas inventam cenas de ciúmes para seduzir o parceiro e conseguem-no com alguma facilidade. Entra em cena a competitividade: competir com alguém que quer o mesmo objecto de amor parece ser um factor altamente estimulante numa relação.

Quantas relações estão à beira da ruptura até aparecer um terceiro que se mostra interessado num deles? Geralmente, o seduzido que pressente um rival tende a transformar-se e ilumina-se para ir à luta, ao desafio da competição.

Os casos que acabam em catástrofe, com as inacreditáveis agressões psíquicas e físicas da parte dos amantes, explicam-se quando se percebe que são pessoas com uma auto-estima desiquilibrada que precisa ser trabalhada, entre outros perturbações psicoemocionais geralmente envolvidas. São relações de obsessão e patologia emocional complexa. Para os amantes este é um vínculo que os aprisiona e sufoca. Eles devem parar, procurar ajuda especializada e tentar perceber por que razão e porque motivos deixaram as coisas chegar ao ponto de uma violência física ou de uma violência psicológica desgastante.

Para todas as outras pessoas que não chegaram a este extremo, mas que estão determinadas a seguir um rumo diferente, é necessário parar e pensar com clareza: “que parte de mim é que eu estou a tentar curar no outro?”; “O que é que preciso ter para poder construir uma relação sólida com o outro?”. Só depois de uma reflexão ponderada e do reforço dos cuidados de amor-próprio, se pode esperar que a próxima relação seja mais recompensadora: já não se procurará tanto o padrão quebra-corações, mas mais uma opção com maior gratificação a dois, com maior cumplicidade e intimidade, e sem uma projecção ilusória no outro.

O início da solução do impasse do ciclo vicioso da repetição de padrões disfuncionais amorosos está em compreender que o quebra-corações só arrasa no plano da fantasia e da extraordinária projecção que os seduzidos fazem sobre ele, de modo desejado e consentido, com uma utilidade perversa e masoquista no sentido da fuga permanente ao crescimento de si.

Ao aumentar a sua auto-estima e valor próprios através da correção das dirtoções de percepção (emocional e cognitiva) assim como na centração de cuidar de si próprio como uma boa mãe ou bom um pai cuida de um filho (i.é, com carinho, afecto, tolerância perante o erro, reforços positivos e de encorajamento, e atribuição de disciplina e limites coerentes entre o que se define como sendo o mais acertado para si e aquilo que se decide fazer), a eterna vítima deixará de sofrer a síndroma do exorcista, ou seja, pára de virar completamente a cabeça para longe do seu espelho interno, assume a responsabilidade das escolhas como modo de compreender como sentir, pensar e agir com o conhecimento integral dos erros anteriores e deixa de entregar o controlo de si a alguém que a utilizará como um objecto de prazer descartável e um troféu.

Relações e ralações, os problemas do casal


Se uma pessoa tem ou pode por si mesma ter problemas, é lógico pensar que duas pessoas, em relação, também terão dificuldades, contratempos, etc.
Não é fácil compreender o casal, até pela variedade relacional existente, por isso vamos começar por definir uma relação a dois, a que chamaremos "casal" e abordar de seguida algumas das suas características mais comuns.

O casal é constituído por duas pessoas com um projecto comum e com interesses afins.

Tal como a pessoa em si, o casal está sujeito a alterações provocadas essencialmente pela evolução da relação. Assim, falamos de namoro para nos referirmos ao período inicial do casal, cuja finalidade é conhecer o "outro", estabelecer um nível de comunicação adequado e criar laços afectivos duradouros.

Após a consolidação do casal (por exemplo com o casamento ou a união de facto), os fins são muito diferentes. Neste momento estamos perante o começo da convivência em comum, da partilha das responsabilidades, etc. Mais adiante pode dar origem à família alargada com o nascimento dos filhos e, portanto, com uma trama de relações ainda mais complexa.

Conforme a etapa em que o casal se encontra, poderíamos falar das várias situações problemáticas:

Namoro:
- Desamor, desinvestimento, clarificação das diferenças antagonistas.

Casamento recente:
- Problemas de convivência;
- Problemas sexuais.

Casamento consolidado:
- Educação dos filhos;
- Divórcio ou separação;
- Rotina.

Mas a vida não é assim tão parcelada como quisemos apresentar neste último quadro e é possível que alguns problemas se mantenham durante todo o processo ou apareçam em momentos diferentes ao longo da relação.

Por outro lado, falaremos de alguns problemas que podem surgir a qualquer momento da relação, como por exemplo: a falta de comunicação ou a comunicação desajustada, os ciúmes, a infidelidade, as relações com os familiares, o aparecimento de perturbações psicológicas, de enfermidades, a falta de amor, a falta de actividades ou de interesses comuns, etc.

Ora vejamos o desamor: As relações conjugais são, ou deveriam ser, um prolongamento aprofundado da relação que já existe com a amizade. Durante um período de tempo devemos dedicar-nos a conhecer o outro, como fazemos com qualquer amigo. As conversas, os encontros em diferentes situações, as relações com o meio permitir-nos-ão descobrir o que realmente sentimos para assim iniciarmos, se possível, uma relação conjugal.

O namoro é um período experimental. Por isso, deve ser encarado sem a obrigação de um compromisso definitivo. É preferível romper agora, se as coisas correm mal, do que manter uma relação que não existe e que acabará por nos tornar infelizes.
Muitas pessoas sentem-se mal quando, depois de saírem duas semanas (ou dois meses) juntos, os seus parceiros lhes dizem que está tudo acabado entre eles. É que, embora custe aceitar, é bastante lógico tal suceder porque se acabamos de conhecer uma pessoa e já resolvemos sair com ela é muito provável que, ao fim de algumas semanas, nos apercebamos de que a relação não tem sentido. É aí que surge o desamor, sendo, em rigor, absurdo dar-lhe esse nome, pois só existe amor quando há entre duas pessoas um compromisso relacional e afectivo baseado na amizade e, por sua vez, esta é impossível ao cabo de um curto período de relacionamento.

Quando, em todo o caso, um parceiro abandona outro, não há desamor, mas sim uma ruptura. O que perturba, não é tanto o ter-se perdido o "outro" mas mais o sentimento de fracasso, momento em que o indivíduo crê que não foi feito para o amor e que nunca mais voltará a sentir o que antes experimentou com intensidade, embora de maneira efémera.

É possível que haja desamor quando os namorados já passaram uns anos juntos. Mas mesmo nestes casos costumam existir outros problemas mais relacionados com a comunicação e com particularidades individuais incompatíveis.

Muitas pessoas referem como as suas relações conjugais fracassaram e, embora tendam a recordar sobre si mesmas as boas recordações, são capazes de reconhecer que houve problemas desde do início porque estavam sempre a discutir, porque se deixavam arrastar pelos amigos, etc...

Quando houve amor e quando a relação termina surgem os sentimento de abandono e de dor. Emerge o medo de começar de novo porque as defesas do ego evocam justificações de que será uma perda de tempo, que não se poderá amar mais ninguém, que se antes se foi enganado o mais certo é que isso ocorra novamente, etc.

Tudo isto, muitas vezes fundamentado em raciocínios emocionais e distorcidos aparentemente realistas, está muito longe da realidade das coisas e do mundo. É que, como se diz, acertadamente, o amor é cego ...e o desamor é míope. Mas qualquer ser pensante pode abrir os olhos da mente e ter presentes as seguintes ideias:

- Se a relação fracassa, não quer dizer que sejamos uns inúteis, pessoas incapazes de amar. Assim como nos tornamos amigos de uns e não de outros, o mesmo pode acontecer no casal. É possível que ainda não tenhamos encontrado a pessoa certa.

- Devemos aceitar, mas não aguentar. Se vê que o seu parceiro está com problemas ou dificuldades, não se responsabilize por isso. A compaixão ou o medo não devem estar na base de nenhuma relação. Se existem problemas, a outra pessoa deverá resolvê-los antes de se comprometer consigo. Isto não significa que nos desentendamos com ela; podemos ajudá-la como a qualquer outra pessoa amiga.

-Uma relação conjugal não acaba com a solidão. Sentir-se-á igualmente só se renunciar aos amigos, se não se esforçar por se relacionar com os outros. Não saia com uma pessoa para deixar de se sentir só, nem atrase a ruptura por ter medo de começar de novo.

- A relação deve começar por fazê-lo feliz a si, não ao seu parceiro, nem aos seus pais, nem aos seus amigos. A única maneira de fazer os outros felizes é sentir-se bem com aquilo que faz, pensa e sente.

Atendendo ao que vimos até aqui, parece que a experiência do desamor não existe, mas não é bem assim. Muitos casais que estiveram unidos por um amor forte vivem essa situação quando se vêem obrigados a separar-se. É o que acontece quando um dos membros do casal morre. Não é fácil explicar o que em momentos desses podemos sentir.
O certo é que o amor não desapareceu, mas continua presente e pode ser viável continuar a utilizá-lo para que a vida tenha sentido. Não há muito tempo que li as reflexões duma mulher que enviuvara há trinta anos. Para ela, as recordações que tinha do marido eram tão maravilhosas que a ajudavam a continuar cheia de alegria e entusiasmo, partilhando o seu amor com os outros.

Os problemas de convivência

A convivência baseia-se nos pormenores da vida partilhada, das coisas e dos lugares em comum.

Todos nós vivemos a experiência da convivência e dos problemas que lhe são inerentes, mesmo quando decidimos «livremente» conviver com amigos ou com o nosso parceiro. É que a convivência não é simples.

Para vencer alguns dos problemas que advêm da convivência, podemos atender às seguintes soluções:

- Aprenda. É possível que até este momento tenha dormido sozinho e que até tivesse o seu próprio quarto. Agora tem de partilhar muitas coisas e é normal que lhe custe adaptar-se a estas modificações. O tempo será um bom aliado, mas também é importante que participe e aprenda a aceitar os hábitos do seu parceiro.

- Estabeleça normas para os pormenores. Talvez o seu parceiro não se lembre de fechar o gel de banho, mas é uma coisa que o irrita. Comunique os seus gostos ao seu parceiro, escute os dele e participem para tentar agradar um ao outro nestes pormenores.

- Comunique. O seu parceiro não tem obrigação de saber o que lhe agrada ou não, e, se não lhe disser, pode passar a vida à espera de que ele faça alguma coisa que lhe agrade. Nem todas as pessoas são igualmente meticulosas e é preciso lembrar as coisas de vez em quando. Embora nos custe acreditar, nós não somos adivinhos.

- Aprecie o esforço do seu companheiro. Se a casa está suja, depressa nos apercebemos disso, mas já o mesmo não acontece quando está impecável e arrumada. As tarefas da casa não são nada simples e é necessário demonstrar não só interesse em executá-las mas também gratidão pelo esforço de quem as fez. O mesmo acontece em muitas outras tarefas e actividades. Devemos estar atentos para não passar por cima de pormenores tão importantes.

A educação dos filhos

Quando educamos, transmitimos parte de nós mesmos. Quando um casal educa, transmite o resultado dos seus acordos e da sua comunicação.

Eis algumas simples reflexões acerca dos princípios que o casal deve ter presentes para que educar os filhos não constitua um problema:

- É necessário que o casal esteja de acordo acerca do que pretende conseguir dos seus filhos e do modo como fazê-lo. Cada um dos pais traçou um futuro para os seus filhos, uma pessoa ideal, e não hesita em participar para o conseguir. O problema surge quando os pais têm ideias diferentes acerca do que desejam conseguir ou utilizam métodos diferentes ou contraditórios.

Embora seja quase impossível chegar a um acordo acerca de tudo, os pais têm de fazer um esforço para estabelecer normas mínimas comuns e para as fazer respeitar. Se assim não for, os seus filhos depressa aprendem a quem devem dirigir-se para conseguir o que pretendem e a saltar por cima dessas normas.
Para isso, há que ceder; talvez como pai, lhe pareça que não é assim tão importante que o seu filho arrume o quarto, mas para a sua mulher isso é essencial. Chegar a um acordo e dar sempre as mesmas ordens sem se contradizerem, tendo sempre presente, não os gostos e as preferências pessoais, mas o que é definido em casal como sendo melhor para os filhos.

- Os nossos filhos não são nossos. Chegará o momento em que serão capazes de tomar as suas próprias decisões e não teremos outro remédio senão aceitá-lo. Também não faz sentido tentar incluí-los como aliados nas discussões que surgem no casal. Isso pode ser muito doloroso para os vossos filhos, que se vêm obrigados a escolher entre duas pessoas a quem querem bem e que apreciam.

- A educação dos filhos depende essencialmente dos seus pais. Por isso devem estar informados acerca do que eles fazem no colégio, nos tempos livres. Pessoas chegadas como os avós e outros familiares também influem na sua educação, pelo que é necessário escolhermos o melhor para os nossos filhos.

Escolas de Pais ou aprendizagem de competências de maternage.

A complexidade da sociedade e as mudanças bruscas e contínuas desconcertam muitos pais que, em situações concretas, se sentem confusos. Em certos casos os pais não saberão como fazer frente às dificuldades que vão surgindo em relação ao comportamento dos filhos. Para pôr um pouco de ordem, orientar e acompanhar, aprender continuamente a lidar com o desenvolvimento dos filhos, surgem as Escolas de Pais.

Através dos cursos, seminários e encontros organizados, os profissionais e especialistas atendem as mais diversas problemáticas que, não chegando a ser patológicas, preocupam os pais de uma determinada comunidade.
Nas escolas, nas vizinhanças, nos centros culturais surgem cada vez mais frequentemente estas escolas ou espaços de atendimento destinadas a responder a esta procura social. O pai ou a mãe que assiste a um destes encontros não deve fazê-lo com a ideia de que nada sabe fazer dos filhos, mas admitindo que precisa de uma orientação para melhor os compreender e ajudar a crescer de maneira sã e equilibrada.

O divórcio ou a separação

As coisas mudam, mas nem sempre para melhor. O divórcio torna-se uma solução para muitos casais que já não sabem como resolver os seus problemas.

O divórcio ou a separação dos pais é uma das maiores mudanças que pode verificar-se no seio da família. É o casal que se divorcia, mas toda a família sofre as consequências. As coisas não costumam ser fáceis, por muitos problemas que existam e por muito deteriorada que esteja a situação o ser humano não pode romper os seus laços afectivos só por assinar uns papéis.

Como para todas as coisas é necessário tempo, tolerância quanto às consequências do processo de luto/perda e de investimento na necessária autoconfiança para recomeçar a dar sentido à nova fase de vida.

Vejamos uma série de problemas que surgem depois da separação e modos de como enfrentá-los:

- A relação com o parceiro: Paradoxalmente, depois da separação, muitos casais recuperam parte do encanto que parecia perdido. Se, estando casados, não sentiam nenhum interesse pelo parceiro, este interesse reaparece e não são poucos os casais divorciados que, por exemplo, mantêm relações sexuais ou saem para tomar café como se fossem velhos amigos.

Nenhuma daquelas condutas é substancialemnte prejudicial, desde que as pessoas envolvidas estejam cientes dos objectivos do seu comportamento e os aceitem. Em certas pessoas, isto contribui para manter a expectativa do reencontro, mas este pode não acontecer e então a relação com o antigo parceiro só reforça ilusões. Por isso importa saber o que se quer e como consegui-lo.

Noutros casos, os problemas conjugais mantêm-se, mesmo após a separação. Os membros do casal continuam a insultar-se, a brigar e a atirar à cara um do outro as coisas que já pertencem ao passado e que, portanto, ninguém pode modificar. Este jogo mantém-se enquanto as pessoas quiserem, porque dois não discutem se um não quiser. Nestes casos, é imprescindível negar-se a falar com o parceiro, se este mantém a mesma atitude.

Quando a educação dos filhos continua a ser de ambos cônjuges, as coisas complicam-se. Nestes casos e fundamentalmente para bem das crianças, os pais devem fazer um esforço por manter uma comunicação que lhes permita chegar a um entendimento que respeite os direitos dos filhos.

- A relação com os filhos: Em princípio, não há motivo para pensar que um único cônjuge não vai ser capaz de educar os filhos de uma forma adequada. Mas, para alcançar esse objectivo, é necessário partir de uma série de princípios. E um deles – para nós os principal – é aprender a tratar o outro membro do casal com mais respeito do que nunca. Não tem sentido desprestigiar o pai ou a mãe diante dos filhos, por muito mal que tenham feito, porque isso criará um maior mal-estar. O respeito deve continuar a ser a norma fundamental.

Por outro lado, as crianças podem sentir-se culpadas pela separação. Pensam que fizeram algo de mal que provocou a ruptura. Por isso é tão importante falar com as crianças, saber como vivem a situação, desdramatizar os factos e fazer-lhes ver que, apesar de não viverem juntos, os pais continuam a querer-lhes bem e que nunca lhes vai faltar nada.

Por conseguinte, os pais separados devem confiar em si mesmos de modo a puderem transmitir serenidade e confiança aos seus filhos. De nada serve que, como mãe, diga aos seus filhos que estejam sossegados se a vêem triste e a chorar por causa do que aconteceu. É altura de encarar a situação com toda a calma possível, de contar com a ajuda necessária e de vencer as dificuldades com confiança. Se os filhos viverem a situação deste modo, a separação não é necessariamente traumatizante.

No que diz respeito aos acordos, os pais devem continua a esforçar-se por estabelecer critérios comuns de educação sempre que possível. Muitas pessoas queixam-se de que o seu cônjuge não educa, mas satisfaz todos os caprichos dos filhos porque só está com eles ao fim-de-semana. Realmente não é uma situação fácil, mas deve insistir-se na necessidade de critérios claros e partilhados, pelo menos nas coisas essenciais.

Mas não podemos esquecer que muitas vezes os problemas conjugais se manifestam como consequência da diversidade de critérios no momento de educar os filhos. Por isso, muitas vezes o único remédio é aceitar a maneira de educar do outro e estabelecer os seus próprios critérios para que os seus filhos saibam o que esperar de si e cresçam de acordo com determinadas normas.

A rotina

É possível que se dedique a uma actividade com certa frequência, consagrando-lhe sempre o mesmo tempo e realizando-a sempre na mesma data. Talvez se encontre com os mesmos amigos à segunda à tarde ou que vá ao futebol todos os domingos de manhã. São actividades que fazem parte da sua vida quotidiana, mas que não se convertem em rotina. E porquê?

Em contrapartida, o facto de se levantar sempre à mesma hora, de comer sempre com a mesma pessoa ou de viajar no mesmo autocarro constituem actividades que podem ser vistas como rotineiras, como algo de monótono e aborrecido. Porquê?

A diferença entre as duas principais atitudes que temos perante diversas actividades da nossa vida está em nós mesmos, na importância que atribuímos a cada uma das situações e na intensidade com que nelas nos empenhamos.

Concluindo, somos nós que criamos a rotina na medida em que adoptamos uma maneira de ver as coisas que se caracteriza pela falta de encanto e pelo tédio.

No seio do casal, a passagem à rotina associa-se muitas vezes ao casamento ou à consolidação do casal a partir da convivência. É no momento em que nos parece que temos ao nosso alcance tudo o que podemos desejar e que, portanto, não precisamos de fazer nenhum esforço. Nada mais longe da realidade.

Se queremos que continue a haver no casal o encanto do namoro, temos de fazer um esforço. Para isso podemos:

- Fixar-nos nos pequenos pormenores que agradam ao nosso parceiro e utilizá-los com frequência. Não é necessário que nos deixemos levar pelas campanhas publicitárias que nos obrigam a comprar presentes em datas concretas (por exemplo no dia de São Valentim), basta demonstrar que não esquecemos o nosso parceiro num determinado momento.

- Utilizar a comunicação e o diálogo para resolver as pequenas dificuldades que vão surgindo na relação.

- Recuperar actividades antigas que eram agradáveis e descobrir outras novas que contribuam para o enriquecimento da relação.

- Deixar de lado desculpas tais como «Estou cansado», «Hoje não me apetece», que podem acabar por tornar-se verdadeiros impedimentos difíceis de vencer. Se não está cansado para ir trabalhar (às vezes estamos, mas não temos outro remédio) ou para ver televisão, talvez valha a pena um esforço para estar com o seu parceiro. Se se habituar a dar sempre a mesma desculpa, ser-lhe-á cada vez mais difícil erguer-se da poltrona e gozar a vida.

A falta de comunicação ou a comunicação inadequada

Embora o ser humano aprenda rapidamente a falar, ninguém o ensina a comunicar e a exprimir-se da forma adequada para que possa fazê-lo livremente e respeitando os outros.

Quando uma pessoa se casa, deposita no seu parceiro sonhos, ilusões e expectativas que de um modo geral nunca comunicou. Mas o nosso parceiro não é nem deve converter-se num sonho; é uma realidade, uma pessoa que, como nós, tem os seus desejos, as suas necessidades, inquietações e preocupações... E a única maneira de conhecer tudo isto é através da comunicação.

Muitas das queixas dos casais baseiam-se essencialmente na falta de comunicação: «Senta-se diante da televisão e não falamos», «Quando lhe digo isto ou aquilo, responde que não lhe interessa, que sou uma pessoa maçadora», «Nada do que eu faço lhe interessa, pois nunca me pergunta». É que comunicar também requer um esforço, uma dedicação.

Para que a comunicação seja adequada, há que ter em conta os seguintes critérios:

- Procurar fazer com que exista uma relação de equivalência entre ambos. Ou seja, partir do facto de todos terem os mesmos direitos. Sem esta primeira fase de respeito, todos os esforços par iniciar um diálogo serão vãos.

- Aprender a verbalizar sentimentos ou desejos, mesmo negações, e isto de uma forma adequada, sem ferir. Imagine, por exemplo, que não lhe apetece sair para dar uma volta. Deve ter a necessária autoconfiança para o exprimir se ter de dizer coisas como «Ontem também não te apetecia», que só serve para criar mal-estar.

- Não utilizar insultos ou desqualificações. Toda a gente tem direito de errar e de mudar de opinião e nem por isso é irresponsável, mentirosa ou doida. Devemos esforçar-nos por aceitar as modificações da maneira de pensar e de sentir do nosso parceiro.

- Respeitar as opiniões do nosso parceiro. Este critério é imprescindível. O facto de ter ideias diferentes das nossas não significa que esteja sempre a contrariar-nos, mas simplesmente que é uma pessoa diferente.

Graças à comunicação e à nossa atitude, devemos ser capazes de:

- Aceitar as renúncias do outro. Do mesmo modo que desejamos que o nosso parceiro entenda que estamos muito cansados ou ocupados para sair, também devemos esforçar-nos por compreender as suas renúncias. O parceiro terá de aprender a ceder em benefício do outro e deverá chegar a uma série de acordos para que o prejudicado não seja sempre o mesmo.

- Não estar sempre a lavar roupa suja. As discussões complicam-se à medida que a relação se consolida, porque se alongam com conflitos do passado ainda por resolver, por isso é tão importante comunicar o que nos magoou na altura em que isso aconteceu, e não recorrer a esse facto nem utilizá-lo para estar sempre a discutir.

- Não utilizar mais o castigo do que o prémio. Podemos comportar-nos no seio do casal como pais que castigam os filhos cada vez que fazem mal, em vez de premiá-los pelas coisas bem feitas. Por muito que nos esforcemos, o castigo não é eficaz. Por isso se o que deseja é, por exemplo, ir jantar fora mais frequentemente, procure fazer com que sejam noites inesquecíveis, em vez de se aborrecer e deixar de falar com o seu parceiro se uma noite resolveram ficar em casa.

Os problemas menores do casal

Passamos a comentar sucintamente algumas situações que podem gerar mal-estar no casal:

- As relações com os familiares. Não é raro que os problemas conjugais estejam relacionados com o tipo de contacto que os seus membros mantêm com a família de origem.

Muitas vezes um dos membros do casal queixa-se de que o seu cônjuge passa mais tempo com a família, que a mãe do outro está sempre lá em casa a controlar o que dizem e fazem, que nunca foi admitido na família do outro. Todos estes problemas podem ser resolvidos se existir no casal confiança, comunicação, respeito e amor.
Com tais ingredientes, os conflitos originados pelas respectivas famílias podem resolver-se, entre outras coisas porque o casal está unido e sabe preservar a sua intimidade, tem os seus próprios critérios e faz sempre o que lhe parece mais adequado.

- O aparecimento de perturbações psicológicas. Algumas mudanças podem ser mais drásticas do que outras e podemos aperceber-nos sem querer de que o nosso parceiro deixou de ser o que era porque está com uma depressão, com falta de memória, ou porque joga de uma forma compulsiva. A diversidade das perturbações psicológicas determina as atitudes que podemos tomar quando surge um problema deste tipo. A intervenção de um profissional pode tornar-se imprescindível para orientar o nosso comportamento.

- O aparecimento de doenças. Quando um dos membros do casal contrai uma doença, é possível que se verifiquem uma série de alterações. Como no ponto anterior, a atitude a tomar perante a doença dependerá de muitos factores. A norma geral é partir da aceitação.

- A falta de amor. É possível que o amor desapareça ou se transforme noutros sentimentos. O amor não é uma coisa concreta e que se meça, pelo que não é fácil falar dele de uma forma científica. Mas muitas pessoas verbalizam que os seus sentimentos mudaram, que já não sentem o mesmo. Nas rupturas ou separações, a explicação habitual é a falta de amor. Isto pode apanhar-nos de surpresa, mas mais uma vez a aceitação é a melhor aliada.

- A falta de actividades ou de interesses em comum. O casal deve basear a sua relação num projecto comum e em interesses afins, porque isso contribuirá para o seu fortalecimento. Quando não existe nada que se possa partilhar, o casal não pode gozar momentos que sejam satisfatórios para ambos.

A solução dos problemas conjugais nem sempre está na ruptura.

Na realidade, existem muitos mais problemas, tantos como os casais constituídos. Para resolver a uma grande parte deles, a intervenção directa e personalizada de um profissional é muito útil.

Na nossa sociedade, a separação ou o divórcio tornaram-se a maneira mais eficaz de resolver os problemas conjugais. Supomos que esta opção tenha sido aplicada em demasiados casos sem atender às suas complicações nem às soluções possíveis.

Não se recomenda que se deva esperar que a uma relação se deteriore completamente para buscar a solução (nesses casos, sim, a única solução será o divórcio), mas, antes que as coisas se compliquem demais e se realmente se considerar que a relação vale a pena, é possível lançar mão de uma série de recursos que permitem superar as dificuldades surgidas na relação do casal.