
Trabalhar para o Estado é uma actividade de risco mental cada vez mais acrescido. Não tanto pelo contacto com o público, frequentemente mal-educado e agressivo, nem tão-pouco pelos constantes ataques populares e dos media, agressivamente directos ou torpemente insinuantes mas todos generalizantes, à função pública e aos seus funcionários.
Trabalhar em prol do Serviço Público é cada vez mais, para quem se dedica com empenho ao que faz, um gradual caminho para o desgaste psicofisiológico sendo tal actividade laboral uma prova permanente de resiliência e tolerância, pessoal e relacional.
É evidente que quando escrevo “trabalhar” não quero dizer “ter um emprego” e há de facto muitos funcionários públicos que somente estão nesta última circunstância. O que desconheço é se alguns daqueles que “têm um emprego público” terão começado ingenuamente por “trabalhar para o Estado” tendo gradualmente desistido do empenho inicial por força dos múltiplos factores de desgaste inerentes ao serviço público, acabando por se resignarem a terem apenas “um emprego público" ao serviço do Estado.
Uma recente machadada na “moral das tropas” foi a aplicação do SIADAP, um complexo sistema de avaliação do desempenho dos funcionários públicos que surgiu com a pretensão de avaliar o
mérito dos funcionários no exercício das suas actividades, e com isso, permitir recompensar os melhores com promoções na carreira, prémios de desempenho e outras boas práticas laborais de recompensa e motivação dos trabalhadores.
Outra suposta vantagem de tão famoso sistema seria parar com a progressão automática na carreira em função da antiguidade dos funcionários e também bloquear alguns favoritismos e compadrios possíveis e existentes no anterior sistema de avaliação.
Mas, e como diz o povo pleno de razão na sua imensa sabedoria, «de
boas intenções está o Inferno cheio».
Para além da complexa burocracia que implica este sistema de avaliação (digno de um qualquer Sir Humphrey Appleby português), o
SIADAP não permite a
justa avaliação do
mérito de todos os funcionários, desde logo pela
imposição de
quotas para a atribuição das classificações.
Vamos fazer um exercício teórico simples: um Serviço com 10 funcionários é avaliado.
Imaginemos que todos eles trabalham num projecto coeso, inovador e eficiente, pelo que cada um e todos em conjunto, cumprem muito bem as funções que lhes foram atribuídas.
Ora a avaliação individual destes funcionários será desde logo injusta para a maioria dos 10. Porquê? Porque só
5% deles ou seja
metade de um funcionário (presume-me que o torso e a cabeça!) poderá ser classificado como Excelente, o que neste caso em particular torna desde logo nula a possibilidade da classificação de Excelente.
Dos restantes funcionários,
20% (neste caso apenas 2 daqueles 10 iniciais) poderão ser classificados com
Muito Bom (ou
Desempenho Relevante), sendo que todos os restantes terão a classificação de
Bom (ou
Desempenho Adequado), não obstante todos eles serem muito bons nas respectivas funções, tal como definimos
à priori no nosso exercício teórico.
Ou seja, em dez funcionários que são na prática muito bons, apenas 2 serão classificados como tal, ficando muito provavelmente os restantes a remoer a injustiça que lhes foi feita.
Sabendo aqueles 10 funcionários que cada classificação anual de
Desempenho Adequado vale 1 ponto, a classificação de
Desempenho Relevante vale 2 pontos e a raríssima classificação de Excelente vale 3 pontos, e que é necessária uma acumulação de 10 pontos para que um funcionários possa progredir na carreira (e mesmo assim tudo depende da disponibilidade financeira do Serviço ou da boa vontade dos Dirigentes), 8 elementos do nosso grupo original de funcionários terão que esperar 10 anos para progredir e mesmo assim tudo depende da aleatoriedade das condicionantes antes referidas.
É claro que algumas almas iluminadas podem dizer: «
ah, então face às quotas, vamos fazer uma atribuição de classificações rotativa, ou seja, este ano são estes 2 funcionários, para o ano são outros 2, e assim sucessivamente». Ora, não basta a injustiça do sistema, vamos também torná-lo ainda mais ofensivo, descaradamente manipulável e absurdo?
Quais os efeitos que este actual sistema de avaliação têm na
coesão dos grupos, ou na
moral e
motivação dos funcionários? Posso dizer, por experiência própria e pela experiência do atendimento clínico a funcionários severamente deprimidos em consequência do SIADAP, que os efeitos são graves e cruéis.
Além disso, não é necessário ser um génio para perceber que aquilo que subjaz à implementação de um tal sistema de avaliação
não é um paradigma de justiça e de recompensa na avaliação do mérito mas outrossim
a criação de um meio burocrático e artificial que impede a progressão dos funcionários, essencialmente por motivos orçamentais.
Mas se um suposto objectivo da implementação de um sistema de avaliação também seria o aumento da produtividade do sector público do Estado, como poderá isso ser alcançado num ambiente cada vez mais imbuído de desconfiança, de medo, de inveja, de desmotivação e de revolta pela acumulação de injustiça, pela arbitrariedade mascarada de rigor e a perspectiva da estagnação profissional quer se seja eficiente quer não?
Porque não se avalia agora então a percepção dos funcionários no que concerne à implementação do actual sistema de avaliação?
Afinal de contas o objectivo mais importante é, de facto, que os funcionários trabalhem e produzam cada vez mais e melhor sendo recompensados em função disso ou o pretende-se desmotivar sub-repticiamente o tecido produtivo do Estado, fazendo a
apologia da mediocridade através da descrença e da desmotivação, para que haja justificação para a tão propalada redução de pessoal ou para a privatização de Serviços?
Quanto a mim, e sempre que fui avaliado
absurda e
injustamente (como pode ser comprovado se efectuarmos uma análise objectiva dos meus relatórios anuais de produtividade, que elaborei e publiquei por iniciativa própria desde 2001 muito antes deste actual sistema ser implementado), para descontrair-me do sistema
kafkiano e de autêntica
tortura chinesa que constituem as chamadas “reuniões de avaliação”, decidi usar um mecanismo de defesa mental enquanto decorre o suplício: tento “
pensar no vazio” e visualizar o hemiciclo da Assembleia da República numa tarde de sexta-feira. Deu sempre resultado.
Não, esta não é uma boa reforma do sistema de avaliação do desempenho dos funcionários.
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