
Caríssimo:
Já sabes o que digo sempre: a depressão é uma tomada de consciência quase sempre dolorosa mas que tem como objectivo a mudança (de atitudes, de comportamentos, de sentimentos e de percepção das coisas acerca de nós mesmos e dos outros e do mundo à nossa volta); pois não é que se as coisas estiverem bem connosco não temos muito em que pensar mudar?
A orientação sexual é um caminho pessoal e não é tão linear e rectilíneo como se apregoa por aí. Já lá diz o ditado: públicas virtudes, vícios privados. Mas não penses que com isto quero dizer que a homossexualidade, tal como a heterossexualidade ou a bissexualidade sejam um vício. Não, a concepção de vício é puramente moral, muito especialmente aquela de cariz religioso que influenciou em muito os julgamentos sociais acerca dos costumes individuais, por exemplo.
Nós, os Psis, sabemos que na realidade existem fronteiras muito difusas entre as orientações sexuais e que as coisas não são tão absolutas como a moral judaico-cristão (ou muçulmana, já agora) quer fazer acreditar.
Na verdade, às escondidas dos olhares públicos - por esses palheiros do interior, pelas matas nacionais a fora, nas dunas das nossas praias (que são como divãs, biombos indiscretos, como cantam os GNR), nos jardins públicos, nos balneários das piscinas, das saunas e dos ginásios da moda, nas cabines dos camionistas que param nas bermas dos pinhais para “descansar”, nas casas de banho públicas dos centros comerciais, das auto-estradas e das estações de comboios, nos hotéis e pensões de águas correntes a preços módicos ou em grandes vivendas de aparência respeitável - passam-se cenas tórridas e muito escaldantes entre pais de família com pais de família, entre mães e pais de famílias diferentes, entre mães de família, entre patrões e colaboradores ou entre colegas de trabalho, entre hetero “passivos” e bi “curiosos” ou entre 2, 3, 5, 6 ou mais pessoas na mesma cama, etc.
Enfim, nada de novo, os gregos, os romanos, os persas e muitos outros reflectiram profusamente sobre isso (até porque tinham grande experiência além do conhecimento de causa).
Hoje em dia - depois de um período recente relativamente que tem sido abundante no debate sobre a temática antecedido por outras anteriores épocas de censura total - não se fala muito mais sobre a realidade desta temática pelas mais variadas razões. Pessoalmente, nem sei se se deveria esgotar o tema, sinceramente, pois a intimidade sexual adulta pertence a uma mesma esfera de maior dimensão – a esfera da intimidade pessoal.
Para mim, o que importa na realidade é que cada pessoa adulta se sinta bem consigo mesma na relação íntima com os outros adultos e que forme inclusive relações afectivas profundas mais ou menos prolongadas mas equilibrantes (com partilha de afectos, emoções, experiências, cumplicidades, enfim, das coisas da vida), tudo dependendo da qualidade da relação entre as pessoas envolvidas e daquilo que procuram obter.
Além de tudo, importa também não esquecer que qualquer que seja a orientação sexual das pessoas envolvidas num relacionamento, encontrar a pessoa “certa” (para aqueles que isso procuram) nem sempre é fácil, pelo contrário.
O que é mais provável é existirem “pessoas certas” para certos momentos mais ou menos prolongados (alguns até são muito longos – por exemplo uniões ou matrimónios de 30, 40 ou mais anos), mas que muitos outros momentos relacionais (tanto para os hetero, homo ou bissexuais) são muito mais curtos apesar de intensos – as chamadas “paixões”; no extremo destas últimas existem ainda os
acting-out fulminantes, de cariz pré-psicótico, a que se chamam “engates”.
Mas nada disto, se olharmos com distanciamento, é mais do que uma procura pessoal da felicidade a que cada ser humano tem direito. Com muitos erros à mistura.
Quanto à chamada Moral Social, é claro que existe ainda uma evidente
descriminação das pessoas que são
diferentes da maioria, em especial em meios pequenos e fechados à mudança ou em ambientes plenos de hipocrisia onde convém a existência de bodes-expiatórios; por mais leis que se façam isso será muito difícil de combater em uma ou em duas gerações. A mudança da consciência social depende da educação e da inteligência emocional dos povos, e nesse aspecto não podemos dizer que Portugal seja particularmente avançado.
A salvaguarda do embaraço ou do vexame público daqueles que legitimamente querem exercer o direito à felicidade pessoal minoritária, por agora, não pode ser alcançado a não ser através de uma atitude de
low profile e de muita descrição acerca da vida íntima e pessoal.
Os americanos chamam à atitude de reserva pública da vida íntima sexual a politica
don't ask, don't tell. Os portugueses, são mestres nisso, no jogo do faz-de-conta (nós não temos ainda um nome específico para essa atitude lusitana do jogo social “
não-queremos-acreditar-que-seja-verdade-que-o-meu-menino-não-me-vai-dar-netos” ou “
faz-de-conta-que-não-sabemos-o-que-está-na-cara-de-toda-gente”); talvez se lhe possa chamar a “
politica portuguesa se-não-vejo-não-existe”, preferindo a plebe arriscar até em grandes e caríssimos casamentos de fachada que se prolongam durante algum tempo com muito álcool, antidepressivos e pancadaria à mistura, tudo para anestesiar a angústia e as dores da tomada de consciência das verdades às quais se fecharam os olhos…
Para mim, essa suposta normalidade das coisas é uma pura negação social – esse poderoso mecanismo de defesa do ego, alargado colectivamente, quando existe um sentimento de ameaça da estabilidade e da coesão do que está pré-concebido como supostamente equilibrante.
Mas claro está, cada pessoa tem o seu ritmo de tomada de consciência e o direito a dar muitas cabeçadas até aprender a dar valor ao que realmente interessa na vida, i. é o bem-estar
latus sensu.
Por isso, meu caro amigo, não te sintas diferente porque na realidade não o és, sejas tu homossexual, bissexual ou heterossexual. És humano, tão-somente isso.
Para mim és um amigo que respeito, é-me indiferente que não gostes de azul, que Bach te faça dormir ou que comas
tofu como se o mundo acabasse amanhã. Até podes gostar mais do Ken do que da Barbie, nada disso interfere com a minha percepção sobre a totalidade da tua pessoa, que identifico como honrada e digna.
Portanto, qualquer que seja a escolha do caminho da tua vida, penso que importa mesmo é que sejas feliz, de preferência muitas vezes e durante longos períodos de tempo, com respeito pelos direitos alheios como aquele que desejas que tenham por ti próprio. Isso requer auto-consciência e serenidade, total sinceridade para contigo mesmo e um espírito crítico e pouco iludido sobre a natureza das pessoas (mas sobre as ilusões envolvidas nas relações entre humanos fica a conversa para outro dia).
...